Cultura

Laércio de Freitas: “A música brasileira precisar mostrar sua grandeza”

Maestro e pianista vê muito ainda a ser descoberto e executado no País

Laércio de Freitas (Foto: Marco Aurelio Olimpio/Divulgação)
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O livro de Hermann Scherchen (1891-1966) sobre como dirigir uma orquestra tem inspirado Laércio de Freitas a desenvolver um curso sobre o assunto e ainda realizar um projeto musical em torno da obra do maestro alemão.

O Tio, como é apelidado, ganhou respeito na música pela capacidade de transformar suas experiências e estudos em um trabalho original, profundo e vigoroso.

Aos 78 anos, pianista, maestro, arranjador e compositor nascido em Campinas (SP), Laércio de Freitas segue a trilha do contínuo exercício, redigindo pedagogicamente o trabalho de Scherchen, uma referência para vários compositores contemporâneos.

Esse trato musical já vem de longa data, já expressada no seu primeiro e sensacional disco, Laércio de Freitas e o Som Roceiro (1972).

Amizade com Radamés Gnattali

“Música é estado de espírito. Radamés Gnattali uma vez perguntou ao (espírita) Chico Xavier o que é esse negócio de música, se é a gente mesmo que faz. O Chico respondeu: há um ponto no tempo que radia para todo o universo. Quem estiver com antena limpa, capta. Como se limpa a antena: estudando”, conta.

Laércio como Radamés são dois exemplos brilhantes do conhecimento teórico a serviço da música brasileira. Não à toa os dois tocaram juntos, foram amigos e romperam as barreiras entre o erudito e o popular.

“Radamés queria ser concertista. Quando saiu do Rio Grande do Sul e chegou ao Rio, conheceu Pixinguinha, que o deixou de cabeça pra baixo. Pixinguinha sabia tudo que ele sabia só que de outro jeito. Pixinguinha escrevia música muito bem”.

O campineiro passou no teste do gaúcho para tocar no Sexteto de Radamés após apresentar dois choros ao piano no estúdio Odeon no Rio, por volta dos anos 1970. Radamés, já na época um expoente da música brasileira aqui e lá fora, odiava ensaiar e é muito provável que ele escolheu Laércio para integrar seu grupo por que sabia que se tratava de alguém excepcional.

“A gente perguntava para o Radamés: maestro, vamos ensaiar? Ele respondia: quem ensaia é escola de samba. E dava tudo certo no palco”, lembra aos risos. Mas quando tinha ensaio, depois de terminado, saíam os dois para beber já à noite.

Outras histórias

Bom de papo, o pianista é conhecido por suas inusitadas histórias na música. Sérgio de Oliveira, jornalista, pesquisador da música e amigo pessoal de Laércio, conta que o Arthur Moreira Lima fez uma série de shows e gravou um disco inteiro só com a obra de Astor Piazzolla, com arranjos do Tio.

Sérgio com a esposa foram juntos com Laércio e a Piki (mulher e produtora do maestro) assistir a uma das apresentações na Sala São Paulo.

“O Arthur elogiou o Tio em cena aberta, pediu para ele se levantar na plateia, e o próprio Arthur o aplaudiu de pé no palco. No final, fomos tomar mais uma na casa do Laércio. No carro, o provoquei sobre o que tinha achado da interpretação do Arthur. Eu disse que considerei as passagens muito agoniadas, parecendo que o ‘cabra’ estava querendo voltar logo para o hotel”.

Quando chegaram a residência de Laércio e Piki, o Tio comentou com Sérgio: “Não foi aquilo que eu escrevi (com relação aos arranjos para o Arthur sobre obra de Piazolla). Senta aí que eu vou te mostrar como era”.

Segundo o pesquisador, ele abriu o piano e tocou tudo de novo, inclusive músicas que não estavam na apresentação nem no disco. “Foram mais de três horas de show exclusivo para dois ouvintes – eu e minha mulher. Saímos de lá com o dia claro, feira já montada na rua, que nos brindou com um pastel de primeira. Tem como não amar um cara desses?”.

Arranjos primorosos

O pesquisador conta ainda que os arranjos que Laércio de Freitas para os discos de Elza Soares são primorosos. A cantora é tão agradecida a ele que certa vez saiu do Rio só para participar de uma série no Sesc Pompeia em que o Tio era personagem principal.

No total, Laércio lançou quatro discos de carreira, mas participou de centenas de outros (além de shows) da nata da música brasileira ao longo de mais de 60 anos de carreira, seja como instrumentista, maestro ou arranjador.

O maestro paulista também circulou por algum tempo com o pessoal da Bossa Nova. E cita Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal como dois expoentes do gênero.

“Os dois tem a música Copacabana de sempre”, rememora Laércio, exaltando sua letra de inconfundível beleza.

E começa a cantarolá-la: “Toda Copacabana que mora em frente / Ao mar azul de anil / Nada é mais carioca que a nossa copa / Que o seu perfil / Copacabana, de mar inteiro / Do mar primeiro bem / Eu me confesso pequeno / Face a seu corpo moreno / Face ao Atlântico Sul, Copacabana”.

Terminado, o maestro solta no meu ouvido baixinho: “Que letra filha da puta”.

E destaca outros da Bossa Nova, como os irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle e Walter Santos. “O Clube da Esquina (movimento de Minas Gerais de música) é uma Bossa Nova com jeito mineiro. Lá tinha grandes grupos”, ressalta.

Diz ter saudade de um disco que fez para o selo do pianista Arthur Moreira Lima. “Nesse disco gravei piano solo de compositores brasileiros da década de 1920. Foi um disco interessante. Tive chance de colocar minha visão brasileira da música popular”.

Há muito a ser descoberto

Ele, como campineiro, faz questão de alertar de nunca ter caído na arapuca da música sertaneja. “São Paulo é caipira”. Uma de suas músicas mais conhecidas, Capim Gordura, é um som regional típico.

“Há muita música para ser descoberta, tocada. A música brasileira precisa apresentar a sua grandeza. Antes, porém, o mercado necessita ter a noção dessa grandeza.”

E segue: “Não tratei a música popular como uma coisa popularesca. O que escrevi para música popular foi de acordo com o figurino. A música é coisa séria”.

Laércio pretende fazer um disco para comemorar seus 80 anos. Uma das ideias é apresentar um trabalho de choro, a sua grande especialidade. “Geraldo Filme (sambista paulista) questionava sempre se no carnaval estariam fazendo marcha sambada ou samba marchado. Então, pensei em pegar isso, e fazer um disco com o título choro sambado ou samba chorado”.

Atualmente, Laércio desenvolve projetos com o flautista Shen Ribeiro, que passou 16 anos fora do Brasil. Shen é especializado em shakuhachi, uma flauta tradicional japonesa. Os dois fazem um trabalho instrumental onde executam obras de Laércio e de outros mestres da música brasileira e do exterior.

“Fui apresentado a ele num café da rua. Ele estava com alguns arranjos em baixo do braço, preparando um show. No trabalho seguinte, numa ópera em homenagem a Portinari escrita e arranjada por ele, fui convidado para tocar. Isso era 2004. Nunca mais nos perdemos de vista. O Tio é muito mais do que um grande músico e maestro. É um visionário, que acredita no trabalho e no que o ser humano tem de melhor”, diz Shen sobre Laércio.

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