Cultura

Em Hollywood, pares formados por atores mais velhos e atrizes bem mais jovens começam a ser mal vistos

No Festival de Sundance, a diferença de idades foi um tema recorrente. Mas, em vez da abordagem tradicional, o que se viu foi uma ênfase analítica

Passos. Licorice Pizza, em cartaz no Brasil, inverte os papéis. Em Good Luck To You, Leo Grande Emma Thompson, 62 anos, contracena com Daryl McCormack, de 29 – Imagem: Genesius Pictures/Align e Universal/MGM
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É uma questão polêmica. O romance entre pessoas de idades diferentes, com a escalação de um ator mais velho e de uma atriz bem mais jovem, durante muito tempo aceita como norma em Hollywood, enfrenta cada vez mais críticas do público. Alguns cineastas começaram, inclusive, a reagir.

No Festival de Sundance, realizado no mês passado, a diferença de idades em relacionamentos amorosos foi um tema recorrente. Mas, em vez da abordagem tradicional, o que se viu foi uma ênfase analítica sobre esse tema.

A inversão dos papéis de gênero apareceu em Good Luck to You, Leo Grande (Boa Sorte, Leo Grande), no qual Emma Thompson, de 62 anos, contracena com Daryl McCormack, de 29, e no ganhador do prêmio do público, Cha Cha Real Smooth, que explora a atração entre um jovem estudante egresso da faculdade e uma divorciada de 30 e poucos anos, interpretada por Dakota Johnson.

Outros filmes, como o poderoso, embora exaustivo, Palm Trees and ­Power ­Lines (Palmeiras e Cabos de Força) ou Sharp Stick (Pau Afiado), de Lena ­Dunham, tratam das realidades do desequilíbrio de forças entre uma mulher jovem e um homem muito mais velho. Uma coisa é certa: a discussão sobre diferença de idades nas telas não está terminando.

Ao contrário. Se levarmos em conta as reações polarizadas a Licorice Pizza (em cartaz no Brasil desde a ­quinta-feira 17), de Paul Thomas Anderson, a conversa, amplificada pelo fato de ocorrer, sobretudo, nas redes sociais, só deverá se tornar mais acalorada. Ao trocar os papéis tradicionais da diferença de idades, ­Licorice Pizza mostra-se desafiadoramente não convencional.

Parte do público parece ter deixado de tolerar o tradicional retrato da diferença de idade nas telas

“Você acha estranho eu sair com ­Gary e seus amigos de 15 anos o tempo todo?”, pergunta a personagem de 25 anos de Alana Haim nessa ágil comédia californiana sobre amadurecimento. A irmã dela encolhe os ombros, sem se comprometer. “Eu mesma acho estranho sair com Gary e seus amigos de 15 anos.”

Uma minoria considerável do público concordaria com ela. No centro do filme, se não existe exatamente um romance entre um adolescente e uma mulher pelo menos dez anos mais velha, certamente há uma atração mútua. Atração que, dependendo de sua leitura da questão fantasia versus realidade que paira sobre as cenas finais do filme, pode ou não culminar em um beijo e uma declaração de amor.

Anderson, falando ao The New York Times, minimizou a importância da diferença de idades. “Não há um limite que é infringido, e não há nada além das intenções certas. Eu ficaria surpreso se houvesse algum tipo de confusão sobre isso. (…) Não há um osso de provocação no corpo desse filme.”

A última declaração soa um pouco vaga, diante das críticas mais veementes de que Licorice Pizza é pouco mais que uma publicidade de pedofilia com uma linda fotografia. Suspeitamos que Anderson estivesse sendo um pouco ingênuo nas afirmações: certamente, a ideia de trazer a diferença de idades para o primeiro plano da história foi criar um certo grau de desconforto.

Anderson, afinal de contas, é um cineasta que fez carreira colocando-se na pele de uma série de perdedores falidos, dos quais a personagem de Haim é apenas a última. Que ela seja atraída por um malandro de 15 anos que pretende enriquecer vendendo camas d’água diz mais sobre o futuro complicado dela e sua baixa autoestima do que sobre grandes ímpetos românticos.

Par. Em O Escorpião de Jade, Allen atribuiu para si próprio Charlize Theron, de 26 anos – Imagem: Dreamworks/VCL

Licorice Pizza é o último de vários filmes que provocaram “confusão”, para citar Anderson. Malcolm & Marie, produção da Netflix escrita e dirigida por Sam Levinson, sobre um diretor de cinema, interpretado por John David Washington, de 36 anos, e sua namorada, vivida por Zendaya, então com 24 anos, gerou críticas pela diferença de 12 anos entre os dois.

Zendaya atribuiu o burburinho ao fato de o público estar acostumado a vê-la em papéis de colegial na franquia Homem-Aranha. Mas talvez também tenha sido porque Levinson havia tocado no tema da fetichização de meninas adolescentes no filme anterior, País da Violência. O fato de a diferença de idades comparativamente pequena ter gerado queixas pode ser, de toda forma, um indício de que a tolerância do público para o retrato da diferença de idade esteja se dissipando.

Não é sem tempo. “Os homens na tela têm uma vida inteira, e as mulheres têm validade limitada”, diz Nicky Clark, fundadora do grupo de ativistas Interpretando a Sua Idade, que faz lobby por elencos com idades apropriadas e pela representação de mulheres mais velhas. “Desde o início dessa indústria, as mulheres tinham de se aposentar aos 40 e não fazer nada especialmente interessante se trabalhassem depois dessa idade. E isso, na verdade, não mudou.”

Segundo a atriz Polly Kemp, cofundadora da campanha ERA 50:50, não há mistério por trás da tendência de escalar mulheres muito mais jovens para contracenar com atores mais velhos. “Acho que tem a ver com o fato de que eram predominantemente homens brancos e mais velhos que encomendavam, financiavam e produziam. Acho que, lentamente, as coisas estão mudando, mas, para as mulheres de meia-idade, a luta ainda é grande. Não me vejo (representada) porque sou de meia-idade, pós-menopausa. Não sou mais considerada sexy.”

Uma posição elevada na lista top de atrizes oferece certa proteção para uma artista ser considerada protagonista romântica viável com mais de 30 anos, mas de forma alguma uma garantia. Aos 37 anos, Maggie Gyllenhaal ouviu que era velha demais para fazer a amante de um homem de 55. “Para mim foi chocante”, disse ela. “Me fez sentir mal, depois muito brava e depois me fez rir.”

Enquanto isso, em filmes ­como Armadilha, a diferença de 39 anos entre Sean Connery e Catherine Zeta Jones era quase tão inverossímil quanto a trama que sugeria que Connery, aos 68, poderia saltar por um tubo de ventilação para escapar de perseguidores.

“Os homens na tela têm uma vida inteira, e as mulheres têm validade limitada”, critica Nicky Clark­

E há, é claro, Woody Allen, um ofensor contumaz no que se refere a decisões de elenco duvidosas, que atribuiu para si próprio Charlize Theron, de 26 anos, como alvo romântico em O Escorpião de Jade.

A indústria do cinema pode ser complacente e vagarosa para agir quando se trata de adotar mudanças importantes. Mas tende sempre a reagir à ameaça de fracasso comercial. Em Sundance, a tendência ao questionamento da diferença de idade pode ter tanto a ver com questões de bilheteria quanto com um reenquadramento dos papéis femininos depois do #MeToo. Mas o fato de eles existirem já é um passo à frente, certo?

Kemp é cautelosamente positiva. “Claramente, a indústria está dando um tempo nesse tipo de representação para examinar essa questão. Desconfio que, diante do que aconteceu nos últimos anos, haja uma relutância em ter mulheres muito jovens em relações sexuais com homens mais velhos no cinema. “Acho que as pessoas estão achando um pouco nauseante o tipo de filme que Woody Allen fazia.”

Clark não tem tanta certeza. Sobre a elogiada atuação de Emma Thompson em Good Luck To You, Leo Grande, ela diz: “Ela está sendo chamada de ‘corajosa’ por estar nua ou fazendo cenas de sexo. Isso é deprimente. Não ouvimos Brad Pitt ser chamado de corajoso quando ele tirou a camisa em Era Uma Vez em Hollywood. É como se lhe tivesse sido dada permissão, e aí todo mundo sabe que ela é mais velha, e isso se torna encantador e atraente. Mas, não havendo essa permissão, não, não é encantador e atraente. É uma atriz que continua no topo do desempenho, atuando com brilho e contando uma história que não é muito contada. Então, damos pequenos passos, mas logo depois eles são puxados para trás”.  •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1196 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Hollywood em maus lençóis”

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