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Gosto de sangue

No Brasil, o consumo de podcasts do gênero true crime não para de crescer, sobretudo entre as mulheres, e impulsiona o lançamento de séries e livros sobre o tema

Pacto Brutal, sobre Daniella Perez, foi a série original mais assistida da HBO Max. O podcast Leila, do Globoplay, sobre Leila Cravo, alcançou o topo da lista de true crime do Spotify - Imagem: HBO Max/TV Globo e GloboPlay/Spotify
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O gênero true crime, que explora histórias de crimes reais, está tão em voga no Brasil que pode até ressuscitar um defunto: o programa Linha Direta, que ocupou horário cativo na grade noturna da TV Globo entre 1999 e 2007, pode voltar em 2023.

A emissora não confirma nem desmente a informação publicada no começo do mês pela colunista Patricia Kogut, do jornal O Globo. Diz que a ideia existe, mas que a decisão só será anunciada em outubro. Seja como for, o fato de se cogitar retomar um programa que parecia enterrado é sintoma de um fenômeno maior. O true crime está bombando, e ganhou novo fôlego graças a formatos cada vez mais disseminados: o podcast e a série documental em streaming. Isto sem se falar, é claro, no boca a boca.

O canal Arquivo Linha Direta, do ­YouTube, que reúne alguns dos programas antigos, tem mais de 64 mil inscritos e alguns dos vídeos alcançam 400 mil visualizações. O buzz perene explica-se: o programa notabilizou-se por tratar de crimes sem solução e ajudou a polícia a encontrar centenas de foragidos da Justiça.

Mas a popularidade também pode ser efeito de um interesse geral nesse tipo de atração. Só no Spotify, a plataforma de áudio mais popular no País, há pelo menos 50 opções de podcasts brasileiros dedicados a true crime. No mundo, o número chega a impressionantes 30 mil, segundo a assessoria de comunicação da empresa.

Só no Spotify, há pelo menos 50 podcasts brasileiros dedicados a true crime. No mundo, o número chega a 30 mil

No Brasil, na comparação entre o primeiro semestre de 2021 e o mesmo período deste ano, houve aumento de 52% no consumo de programas em áudio do gênero. E a tendência é continuar em alta. A faixa etária predominante é de 18 a 24 anos e há, entre os ouvintes, mais mulheres que homens.

Uma pesquisa divulgada em 2019 pela Civil Science, com base no público norte-americano, constatou que, entre ouvintes de podcasts, a audiência feminina para true crime é de 26% e a masculina, de 12%. Provavelmente, a tendência repete-se pelo mundo.

Carol Moreira, um dos nomes à frente do Modus Operandi, um dos podcasts mais populares do País, conta que pelo menos 75% da audiência do programa é feminina. “Também reparamos que a maioria dos podcasts de true crime no Brasil é comandada por mulheres. Somos atentas aos detalhes e meticulosas, mas vejo também como uma busca por proteção”, diz Carol, lembrando que ela e Mabê Bonafé, a outra autora, mantêm alguns cuidados, como não tratar de crime em que o assassino esteja solto. “Estamos em um país onde o feminicídio bate recordes, então validamos nossos medos e aprendemos a sobreviver.”

Modus Operandi é produzido desde 2019 e já teve mais de 18 milhões de plays. Começou independente e depois foi incorporado ao Globoplay, contando histórias de crimes de alta repercussão. A dupla de criadoras também fez trabalhos para a Netflix (a série Além do ­Crime, no canal do YouTube da plataforma) e, recentemente, partiu para outro formato em que o true crime faz sucesso (há muito mais tempo, aliás): o livro. No Guia de True Crime Modus Operandi (Editora Intrínseca, 400 págs., 60,90 reais), elas compilam contextos históricos e um glossário de termos que ajudam a acompanhar o gênero.

Vários formatos. Depois de criarem o Modus Operandi, em 2019, Carol Moreira e Mabê Bonafé escreveram uma série e lançaram um livro sobre o tema – Imagem: Jéssica Liar

Carol entende que a responsabilidade­ de quem conta as histórias é grande. Ainda mais depois de o true crime ter se tornado uma vertente da cultura pop. Não são poucos os produtos que partem da história do serial killer e, por vezes, o transformam em celebridades. “O true crime existe desde sempre, mas, de uns tempos para cá, há mais foco na qualidade. Temos sempre que lembrar que há o sofrimento das famílias, as dos criminosos, inclusive”, diz Carol.

Nem todos os projetos recentes de true crime têm a intenção de mudar rumos de investigações, apesar de alguns conseguirem fazer isso. Há casos também em que a repercussão, de tão grande, acaba por se tornar parte da história. Foi assim com A Mulher da Casa Abandonada, de Chico Felitti, que narra a história da brasileira que manteve uma mulher em condições análogas à escravidão nos Estados Unidos e é foragida do FBI há duas décadas. O podcast levou uma multidão à frente da tal casa onde ela mora, em São Paulo, em busca de pistas.

Em outras produções recentes, mais forte do que o desejo de mudar os rumos da Justiça é o de revisitar a história a partir de um contexto mais amplo e aprofundado. É o caso de Leila, podcast em oito episódios do Globoplay sobre a história da atriz Leila Cravo, e Pacto Brutal, série documental da HBO Max sobre o assassinato da atriz Daniella Perez.

Ambas as histórias tratam de crimes contra mulheres – no caso, coincidentemente, duas atrizes brasileiras no auge de suas carreiras. São casos que repercutiram muito na imprensa da época (Leila sofreu um misterioso atentado em 1975, Daniella foi assassinada em 1992), e que, apesar disso, ou talvez justamente por isso, acabaram ficando no imaginário popular de maneira bastante enviesada.

“Acho que o streaming colaborou para isso e a pandemia, também”, afirma Tatiana Issa

Muita gente lembra da primeira versão que ganhou os jornais sobre a história de Leila: ela teria tentado se suicidar se jogando de uma altura de 18 metros, de um luxuoso motel, no Rio. Mas as investigações foram além disso, e o podcast produzido pela Bigbonsai mergulha nelas e nos fatos que a polícia ignorou. Depois de sair do coma e recuperar a memória, a atriz, que era apresentadora do Fantástico à época, garantiu que nunca tentaria suicídio e disse que foi vítima de uma tentativa de assassinato. Mas, àquela altura, o caso já tinha “esfriado” na mídia. A carreira e a saúde mental de Leila entraram numa curva descendente. Ela morreu em agosto de 2020, pouco depois de ter autorizado a produção do podcast.

“Não deu tempo de entrevistar a Leila”, lamenta Daniel Pech, autor da produção que alcançou o topo da lista brasileira de true crime do Spotify em setembro. “Mas foi importante ter o aval. A intenção sempre foi dar voz a ela. O fato de o caso não ter reverberado tanto diz muito sobre como tudo aconteceu, numa sociedade machista, durante o governo militar. Com a morte dela, o projeto ficou parado um tempo, mas retomamos com a intenção de não ser detetivesco, mas discutir a sociedade brasileira de ontem e de hoje.”

A história de Leila lembra a de outra personalidade dos anos 1970 que também bombou no formato podcast: Angela Diniz, protagonista de Praia dos Ossos. O programa da Rádio Novelo serviu, inclusive, como referência para Leila. “São casos que se cruzam, duas vítimas de um pensamento da época, mulheres julgadas por não cumprirem o papel esperado numa sociedade conservadora”, diz Pech.

Quase 20 anos depois, a tragédia de Daniella Perez mostraria que a sociedade não evoluiu muito. Tatiana Issa, diretora da série documental de cinco capítulos, ao lado de Guto Barra, enumera os problemas que se seguiram ao assassinato: “Machismo, circo midiático e, mais, questionamento sobre como as leis são empregadas e como as testemunhas são tratadas no Brasil. A imprensa sensacionalista usava fotos dos personagens de Dani e Guilherme (de Pádua, ator e assassino da atriz) para dizer que eles tinham um caso”.

Segundo Tatiana, 30 anos após o crime, muita gente ainda acreditava que o romance existiu, que foram tesouradas e não punhaladas, entre outras histórias descabidas. “Por isso, quis fazer a série sobre a luta de uma mãe em busca da verdade, e também para humanizar a imagem da Dani”, explica ela. Por isso, também, a opção de usar apenas entrevistas de arquivo dos assassinos (Guilherme e sua mulher, Paula Thomaz), que, na visão dela, “já tiveram visibilidade demais”, a ponto de fazer a opinião pública ter uma imagem confusa da tragédia.

Desenterrado. O programa Linha Direta, dos anos 1990, pode voltar em 2023 – Imagem: Reprodução TV/Globo

A estratégia deu certo. Lançada em julho, Pacto Brutal chegou à marca de série original mais assistida da HBO Max no Brasil. Sem poder revelar números, Tatiana diz que o melhor termômetro é a rua: a atração fez o assunto voltar às mesas de bar. A diretora atribui o sucesso também ao formato em episódios, que dá espaço para mais detalhes e para a exploração de ganchos narrativos que motivam as “maratonas”. “Acho que o streaming colaborou para isso e a pandemia, também”, afirma.

Paula Kirchner, diretora de conteúdo não roteirizado da Warner Bros. Discovery Latam, empresa responsável pela plataforma HBO Max, concorda que o ­timing foi perfeito para lançar ­Pacto ­Brutal e também PCC: Poder ­Secreto (sobre a organização criminosa que se espalha pelo País). “Não sei se seria possível esse boom do gênero há 15 anos”, diz a executiva. “O mundo é outro. A explosão dos true crime veio em razão da expansão das plataformas, e eles caem no gosto das pessoas porque têm elementos de nostalgia e desafio. Viramos todos um pouco detetives.”

No caso do Globoplay, o investimento em um produto original ­como ­Leila sucedeu a chegada à plataforma de “clássicos” da podosfera, como o citado Modus Operandi, e o ­Projeto ­Humanos, de Ivan Mizanzuk, que já era sensação ao explorar O Caso Evandro – tornado também série – e que hoje tem sete temporadas, com crimes diferentes.

“Fazemos um acompanhamento contínuo do comportamento do público, estudando sua jornada de consumo”, explica Teresa Penna, diretora do ­Globoplay e Produtos Digitais. “A partir disso, constatamos que o true crime tem grande demanda, e vale lembrar que é um comportamento global.”

Sem detalhar números, Teresa conta que os títulos de true crime “têm ótimo desempenho de audiência”, e cita o exemplo de Altamira, temporada do ­Projeto Humanos que estreou em abril e trata do assassinato de meninos na cidade paraense, na década de 1990. “­Altamira chega a ter quase o dobro da audiência de O Caso Evandro em seu auge, o que é impressionante”, diz ela, reforçando o excelente momento do gênero e dando pistas de que o fenômeno pode estar longe de ter atingido seu o pico. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1226 DE CARTACAPITAL, EM 21 DE SETEMBRO DE 2022.

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