Cultura

Funarte virou palco do obscurantismo neopentecostal do governo

Ex-diretor da fundação, Marcos Lacerda avalia o desmonte do principal órgão federal de cultura de relacionamento com a classe artística

O Palácio Capanema, no centro do Rio, onde funciona a sede da Funarte (Foto: Tânia Rêgo/ Agência Brasil)
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A Funarte é o principal órgão federal de cultura de relacionamento direto com a classe artística por meio de seus inúmeros projetos. Não à toa se tornou palco da política contrária à arte expressada por este governo.

A aproximação com o obscurantismo e o extremismo de Bolsonaro e de pessoas que passaram a ocupar cargos chaves dentro da fundação tem desfigurado a instituição com histórico papel de fomento à música brasileira, a mais importante expressão cultural do País de unânime reconhecimento internacional.

O Projeto Pixinguinha, criado pela Funarte no ano de sua fundação, ainda no governo militar na década de 1970, teve papel central na solidificação da cultura nacional. É difícil encontrar nomes consagrados ou não, mas de relevante produção musical, que não tenham passado pela iniciativa (hoje extinta).

“A fundação tem tradição de projetos sociomusicais de envergadura e tradição. O projeto Bandas de Música, voltado para o ensino e com presença em todo o território nacional, existe há décadas e tem capilaridade nacional espantosa. A consistência do projeto se revela nas gerações que tem se formado com ele”, conta Marcos Lacerda, pesquisador e crítico musical, doutor em sociologia e ex-diretor do Centro da Música (Cemus) da Funarte entre 2015 e 2017.

Fim de projetos musicais

Em meio ao desmonte que a instituição vem enfrentando nos últimos anos, alguns projetos já foram descontinuados, como é o caso do programa Ibermúsicas. Desde o início de agosto, músicos e representantes de entidades vêm solicitando por meio de ofício subscrito a sua retomada. O programa fez integrar mais de 100 artistas no circuito internacional de música.

 

“Era necessário ampliá-lo numa escala infinitamente maior para que pudesse ter um peso real. O atual governo optou pelo pior: acabar com o projeto. Perde-se com isso as interações entre músicos latino-americanos que o projeto vinha sedimentando”, avalia Marcos.

Outro projeto que se encerrou sob críticas de músicos foi a Bienal de Música e Cidadania, que teve uma edição ano passado e reunia projetos sociomusicais no País para troca de conhecimento.

Cadeia produtiva e criativa da música

No entanto, a Bienal de Música Contemporânea segue. Segundo Marcos Lacerda, que a frente da Cemus chegou a organizar uma edição do projeto, diz que o responsável direto por manter viva a Bienal foi o pesquisador erudito Flávio Silva, que faleceu este mês. “Era uma das pessoas mais interessantes que conheci na instituição e carregava a nobreza do servidor público no sentido exato do termo”.

Quando se fala em música, não há somente o mainstream, mas uma extensa cadeia econômica com vários tipos de trabalhadores.

“É preciso entender que quando uma atividade, um teatro ou um festival se encerra, a cadeia produtiva e criativa da música é prejudicada. Eu me refiro ao que considero ser uma vanguarda na produção e criação de música popular no Brasil. Trata-se dos artistas não vinculados diretamente à indústria massiva, ao grande mercado.”

Pode-se alegar que a autorregulamentação chegou à indústria cultural, mas para o sociólogo, “numa sociedade capitalista, profundamente desigual, violenta e fortemente hierarquizada, não há livre concorrência no campo cultural em geral, muito menos no âmbito da música e da canção popular”.

 

Acrescenta-se ainda o baixo interesse do poder econômico à criação musical mais independente e original, fora do sistema midiático de massa.

“Então temos aqui um segmento muito prejudicado pelas novas diretrizes da política cultural deste governo: os artistas da canção e da música mais independente”, ressalta o pesquisador.

Golpe parlamentar de 2016 desfigurou os programas

Quando foi diretor do Centro de Música da Funarte, Marcos Lacerda comentou seu foco na produção independente, destacando os inúmeros coletivos de música existentes para ocupação de espaços em diversos lugares, relembrando o que foi o projeto Pixinguinha.

“O golpe parlamentar de 2016 desfigurou completamente todos os planos, programas e projetos da gestão do Ministério da Cultura e da Funarte. De repente, não havia mais nenhum interesse estratégico neste segmento de ponta, que é hoje uma espécie de vanguarda da produção, da circulação e da criação em música e canção popular. E isso se consolida com a vitória da extrema direita na eleição de 2018. Sobre os beneficiários (dessa política), talvez o obscurantismo do fanatismo neopentecostal, a monocultura da música de massa, e oportunistas dos mais variados”.

Ancine também é perseguida

Marcos Lacerda diz não parecer exagero dizer que tanto Ancine (Agência Nacional do Cinema, que também tem sido palco de ataques do governo à classe artística) quanto Funarte, foram “selecionadas” pelos que assumiram o poder pela sua relação imediata com segmentos da sociedade civil associada aos trabalhadores da cultura e das artes em geral.

“Quanto ao que a classe artística deveria fazer, com toda sinceridade, não sei dizer. Mesmo no ambiente independente, extremamente complexo e heterogêneo, é difícil pensar numa coesão capaz de instaurar uma ação coletiva de impacto real sobre o atual governo. Seria necessário algo mais, com a participação de grupos amplos da classe trabalhadora precarizada”, avalia.

Depois que saiu da Funarte, Marcos Lacerda deu continuidade aos seus trabalhos acadêmicos. Durante o ano de 2018 e os primeiros meses de 2019, atuou como investigador visitante do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e foi bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian (instituição portuguesa) para a escrita de um livro sobre a obra do sociólogo e filósofo português Hermínio Martins. O livro deve ser publicado este ano.

Marcos faz ainda a curadoria, com Sérgio Cohn, da coleção Cadernos Ultramares, que reúne volumes em homenagens a grandes intelectuais brasileiros, com os seus melhores ensaios. Em breve ele publica ensaio crítico sobre o compositor Ronaldo Bastos.

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