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Franz é o nome dele

Quem é Franz Rogowski, ator alemão que pode ser visto em dois filmes em cartaz nos cinemas e em outros seis exibidos no streaming

Emoção contida. Disco Boy: Choque Entre Mundos, do diretor italiano Giacomo Abruzzese, está em cartaz. Passagens, do cineasta estadunidense Ira Sachs, estreia na quinta-feira 17 – Imagem: MUBI/02Play e Pandora Filmes
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Ele não é bonito. Nã tem corpão. Não corre e salta como Tom Cruise. Nem voa e luta como os atores que interpretam super-heróis. No entanto, emana dele algo que impregna a tela e leva o público a querer saber quem é.

A primeira aparição de Franz ­Rogowski no cinema, em 2011, no papel de um adolescente desajustado, pode ter passado despercebida. As interpretações do ator alemão, de 37 anos, em filmes de diretores de prestígio, como ­Michael ­Haneke, Terrence Malick e Christian Petzold, fizeram, porém, seu nome circular fora do nicho dos festivais.

Seu tipo estranho fortalece o enigmático Disco Boy: Choque Entre Mundos, em cartaz nos cinemas desde a quinta-feira 3. Sua opacidade amplifica a paleta sentimental de Passagens, que estreia na quinta-feira 17.

Disco Boy, primeiro longa-metragem de ficção do italiano Giacomo ­Abruzzese, segue o percurso de Aleksei, um bielorrusso que cruza clandestinamente as fronteiras europeias. Ao alcançar a França, ele perambula, desconectado, até ser detido. A possibilidade de obter cidadania leva-o a integrar-se à Legião Estrangeira, onde treina para participar de uma missão nas profundezas da natureza africana. Lá, sua identidade flutuante ganha outras camadas, que o filme representa por meio de ênfases sensoriais.

O passado desfocado do personagem, assim como as indeterminações sucessivas que o acompanham, é reforçado pela presença de Rogowski. A estranha dicção do ator é o primeiro aspecto que chama atenção. Rogowski nasceu com uma má-formação, chamada lábio leporino, e fez uma cirurgia na infância para corrigir o problema. Ele, no entanto, sibila. Sua voz soa como um esforço, uma ­disputa entre dentro e fora.

Tal característica intensifica sua incorporação de personagens marcados por restrições – estejam elas no idioma, nas emoções ou na lei. Ela é usada, por exemplo, para criar uma marca indelével na memória de quem assiste Great ­Freedom. No filme do austríaco Sebastian Meise, Rogowski interpreta um homem enquadrado no Parágrafo 175, que criminalizava a homossexualidade.

Entre as idas e vindas ao cárcere, seu personagem estabelece um vínculo amoroso com o companheiro de cela. A expressividade facial de Rogowski é do tipo que mais oculta do que transparece. Esse aspecto, adicionado a seu olhar de cachorro perdido, o torna eficaz para viver personagens introspectivos, silenciosos ou que tentam inutilmente atravessar o muro da incomunicabilidade.

O diretor Ira Sachs explora esses recursos de modo a acentuar as contradições de Tomas, personagem do ator em Passagens. O filme é uma releitura polissexual de Jules e Jim – Uma Mulher ­para Dois (1962), de François Truffaut. Sessenta anos depois, Jeanne Moreau cede o posto da mulher amada por dois homens a Rogowski, que oscila entre o amor ao marido, Martin (Ben Wishaw) e a paixão por Agathe (Adèle Exarchopoulos).

Quando a relação com Martin sofre o esfriamento da rotina, Tomas, ao ter um encontro com Agathe, é arrastado para uma tempestade perfeita. Enquanto as possibilidades do amor livre era um dos temas que Truffaut antecipava em sua época, Passagens explora o campo das probabilidades do poliamor, questionando equilíbrio entre liberdades, egoísmos e desejos.

Tal como fizera em Deixe a Luz Acesa (2012) e O Amor É Estranho (2014), Sachs aborda os afetos pelo ângulo da dor. Em seus filmes, os relacionamentos são, sobretudo, mais acúmulos de solidão.

Para evitar a armadilha dos excessos emocionais ou de diálogos, Passagens prefere o não dito, o impulsivo. Para isso, o talento de Rogowski contribui muito: ele mantém os sentimentos de Tomas na obscuridade. Enquanto as emoções ficam sujeitas ao desentendimento, o desejo ­sexual flui como força desbloqueada. Os corpos, representando essa ambivalência, ocupam um lugar central em Passagens.

A solução não passa apenas pela pintura crua do sexo: envolve posturas e movimentos e limita o acesso às faces, que muitos cineastas tendem a tratar como único espaço de emoções. Aqui se manifesta um terceiro aspecto que dá singularidade aos personagens de Franz Rogowski.

Dono de uma voz sibilante, o ator tem dado vida a figuras introspectivas ou um tanto obscuras

Uma vez que a voz sibilina e a face estranha poderiam ser obstáculos à carreira de ator, seu corpo parece concentrar a maior parcela de sua energia. Esta é a causa mais provável da impressão de “presença” que ele provoca. E esse “algo” não se deve apenas à aparência; passa pelos gestos e movimentos, mas perpassa também o silêncio de um personagem lendo um livro.

Esta tensão contida pode irromper em cenas físicas, como a do karaokê em Happy End, de Michael Haneke. Em grande parte, porém, não há explosões, a interpretação não transborda – como costuma acontecer nas atuações ganhadoras de Oscar.

Talvez por isso os personagens de ­Rogowski vivam numa espécie de limbo territorial, como o clandestino de Em Trânsito, ou persigam fantasmas, como o mergulhador de Undine, ambos do alemão Christian Petzold. Eles podem oscilar entre inocência e ferocidade, como em Luzifer, ou sair de um vazio para entrar em outros, como em In the ­Aisles. Cada época produz intérpretes capazes de revelar aos contemporâneos aquilo que não compreendem ou escondem de si. Franz Rogowski é um dos nossos. •

Publicado na edição n° 1272 de CartaCapital, em 16 de agosto de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Franz é o nome dele’

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