Cultura

Festival de Brasilia termina com saldo positivo que consolida uma proposta

A opinião geral dava conta de um embate final entre ‘Big Jato’ e ‘Para Minha Amada Morta’, apostas cacifadas pelos prêmios a dois ótimos trabalhos

'Para Minha Amada Morta' levou prêmio de direção e outras cinco categorias reconhecidas
Apoie Siga-nos no

Sem surpresas, o 48.º Festival de Brasilia terminou na noite de terça-feira com a entrega dos Candangos aos vencedores. Muitas vezes é melhor assim, quando a decisão do júri se presta a apenas confirmar a qualidade do que foi exibido, sem sustos e devaneios.

Isto não significa uma premiação óbvia, vazia de expectativa. Pelo contrário. Havia uma espera estimulante na platéia do Cine Brasília pela escolha entre pelo menos quatro títulos de longa-metragem dignos dos troféus, o que é uma margem muito boa para uma seleção competitiva enxuta de seis concorrentes, síntese refletida também nos doze curtas-metragens.

Aí sim pode-se falar em algo surpreendente e positivo para um evento que busca se consolidar com uma proposta.

A rigor a opinião geral dava conta de um embate final entre dois longas, Big Jato, de Cláudio Assis, e Para Minha Amada Morta, de Aly Muritiba. Aposta cacifada com o prêmio de melhor filme ao primeiro, precedido por quatro outros importantes, e o de direção ao segundo, junto com outras cinco categorias reconhecidas. Dois ótimos trabalhos, elaborados no que se poderia querer na autoria, mas com franco diálogo com o público.

Não se pode dizer o mesmo quanto a este segundo quesito sobre Fome, um projeto exigente e um tanto autocentrado nas aspirações como se tem acompanhado na carreira mais recente de Cristiano Burlan. A experiência, no entanto, tem valor como desafio e sugere bons debates, como de fato se deu no encontro tradicional da manhã seguinte a exibição.

Essa percepção parece ter sido confirmada pelo júri ao acomodar o filme em uma categoria aleatória como é a do premio especial, concedendo-o a Jean Claude Bernardet, o ensaísta agora aposentado da escrita e voltado a atuação. Protagonista autorreferencial, por certo sua presença determina toda a força na tela. De quebra, a escolha abriu espaço para se refletir sobre o melhor intérprete da edição, mais uma vez centrado em dois fortes concorrentes.

Com esta análise inicial do saldo, acrescido do prêmio do público mais que justificado a A Família Dionti sobre o qual escrevi anteriormente, chega-se a conclusão evidente de um partido seletivo e coerente dos jurados.

Quando se opta por uma concentração, pode-se discutir talvez por que um e não outro como destaque absoluto e não se foge a regra nos casos de Big Jato e Para Minha Amada Morta. A variante a princípio parece ser subjetiva e por enquanto sem indícios concretos de distenção entre o colegiado. 

Mas é possível que se tenha querido reconhecer não apenas o talento já sabido do diretor pernambucano, em sua terceira vitória apenas em Brasília, sem contar outras vitrines como o extinto Festival de Paulínia, como também uma guinada nas preocupações e estilo do que se viu até então com Febre do Rato.

Como atentou um colega, Assis vinha num pique de retratar uma realidade brutal do País, e não nos poupava na franqueza das cenas, e agora surge mais brando, suave mesmo. Tem delicadeza, ironia e humor a cativante história de adolescente aspirante a poeta que sofre com a incompreensão do pai e busca refúgio na áurea libertária do tio.

No drama real romanceado em conjunção com o livro assinado por Xico Sá sobre a própria experiência em vilarejo de Pernambuco, difícil reagir às decisões finais da competição. Daí os prêmios ao roteiro de Ana Carolina Francisco e Hilton Lacerda, a animada música do DJ Dolores, a atuação forte há muito desejada da eterna Macabéa, Marcela Cartaxo, e por fim ao duplo desempenho de Matheus Nachtergaele como os irmãos antípodas na personalidade.

 

Cena de Cena de ‘Big Jato’, de Claudio Assis, com Matheus Nachtergaele


Quanto a Cartaxo, não parecia mesmo haver rival a altura. O caso de Matheus, no entanto, propicía um questionamento. Ao ator a quem Bernardet dedicou seu prêmio, caberá sempre a expectativa do extraordinário, e ele não desaponta agora. Apenas talvez não acrescente ao sabido.

Por isso mesmo razoável crer na possibilidade maior de valorizar presença igualmente iluminada de um ator afeito a atuações mais discretas, nem sempre de projetos evidentes. Fernando Alves Pinto, o protagonista de Muritiba na trama de vingança urdida ao descobrir que sua amada morta lhe escondia um amante, tem desempenho triunfal e talvez o melhor da carreira, escorado em um tom nuançado que parece advir das parcerias com Lina Chamie.

Não seria provável sem ele o bem-sucedido embate antagônico com Lourinelson Vladimir, o rival, e Giuly Biancato, como filha deste, merecedores dos respectivos troféus de coadjuvante.

Do mesmo modo, um princípio não apenas inerente à qualidade mas também a conotações exteriores ao filme levaria a imaginar a preferência por Para Minha Amada Morta em vez de Big Jato para o premio decisivo. Quem sabe carimbar um estreante na ficção que faz um interessante amálgama com seus interesses no documentário fosse mais condizente a um festival que busca se renovar.

Busca essa que se deu radical no ano passado e muito mais equilibrada desta vez, ao impulsionar uma nova geração na experiência cinematográfica, da qual Muritiba faz parte. Pode-se supor alguma aversão a novamente destacar esse frescor, que precisa ser separado de mera inventividade vazia de um conceito mais maduro, ainda que com deslizes de roteiro sintomáticos de quem inicia. Nenhuma recriminação ao talento estabelecido, até porque se trata como já foi dito de um desvio de caminho estimulante, certamente entendido assim pelo júri.

Mais complexo parece ser o caso dos dois concorrentes ignorados na premiação, o único documentário presente Santoro – O Homem e sua Música e o filme que fechou a seleção, Prova de Coragem. O primeiro, para ficar numa expressão a calhar, desafinou ao eleger um formato convencional para um músico original, qualidade afirmada todo o tempo pelos depoentes sobre o maestro Cláudio Santoro.

O amazonense é um símbolo esquecido da inovação do universo da música clássica e das composições e experiências modernas como o dodecafonismo. Também uma personalidade em Brasília, onde dá o nome ao Teatro Nacional. O diretor John Howard Szerman, ali radicado, faz esforço válido para recuperar a memória de Santoro, morto em 1989.

É de se questionar se o modelo adotado, interessante no início com as apresentações por diversas orquestras do repertório de Santoro, mas depois reiterativo, poderia prescindir do didatismo como regra e seguir por vias mais estimulantes.

Curioso que o cuidado num cinema dito de qualidade, o cinema de qualité, como se referem os franceses, no som do documentário por exemplo, atravesse como princípio todo o filme de Roberto Gervitz. Prova de Coragem parte do livro Mãos de Cavalo, de Daniel Galera, para reforçar o conflito amoroso de um casal a partir da gravidez dela e por em segundo plano os impasses geracionais na adolescência, tônica do original.

Esqueça-se o livro, exorta Gervitz, sem estar errado, mas se não fosse a sensação de ter uma história mais envolvente e problemática do que decidiu filmar. Como está, há certa banalidade em explorar a crise detonada pela gravidez dela, um desejo nao compartilhado pelo marido prestes a se desafiar numa escalada a montanha na Terra do Fogo.

Vez ou outra, há lampejos de questões mais bem desenhadas, justamente na parte em que o protagonista se debate com um segredo do passado, revelador de sua postura imatura atual. As opções de narrativa também parecem distanciar e esfriar a empatia com as dificuldades do par.

Passa pela rispidez dos diálogos um tanto velozes para a verossimilhança e um contexto artificial inviabilizador das marcas deixadas por um estado conflituoso. Decidir-se por uma produção impecável na encenação, com fotografia, direçao segura mas um tanto conservadora, solene mesmo em alguns momentos, atuação correta mas sem nuanças de dois belos atores (Mariana Ximenes e Armando Babaioff), tem seu preço na esfera da inventividade. Ainda que não pareça ter sido esse o objeto do diretor, a opção parece conduzir o filme a um patamar incongruente com seu tempo.

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo