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Ex-maldito, agora romântico

Aos 80 anos, Jards Macalé surge renovado em Coração Bifucardo, um disco dedicado às canções de amor

Ex-maldito, agora romântico
Ex-maldito, agora romântico
O novo álbum nasceu do horror trazido pela pandemia e pela crise política instalada no País – Imagem: Leo Aversa
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Em O Amor nos Tempos do ­Cólera, de Gabriel García Márquez, o médico Juvenal Urbino celebra a chegada dos 80 anos dizendo que terá tempo para descansar quando morrer, mas que essa eventualidade, por ora, não faz parte de seus planos. Pois o cantor e compositor carioca Jards Macalé, 80 anos recém-completados, além de tampouco ter planos de morrer, fez planos para renascer – no caso, artisticamente.

Coração Bifucardo, lançado na semana passada, é o terceiro e melhor trabalho de Macalé nos últimos quatro anos – os outros são Besta Fera (2019), e Síntese do Lance (2021), em parceria com o pianista João Donato. O álbum nasceu do horror trazido pela pandemia e pela crise política instalada no País.

Aflito com o que via e ouvia, o artista entrou em contato com Kati Almeida Braga, proprietária do selo Biscoito Fino, e propôs um disco no qual se cantasse o amor. “Falar de amor é um gesto político”, diz Macalé, em entrevista a Carta Capital.

Embora Jards Anet da Silva traga em sua biografia a direção de shows e discos de Gal Costa e Caetano Veloso (por exemplo, o clássico Transa, de 1972), um epíteto incômodo grudou em sua pele feito tatuagem: “maldito”.

O termo, que recaiu sobre outros artistas de sua geração, como Luiz Melodia e Walter Franco, pode até parecer interessante nos dias de hoje. Mas, para Macalé, sempre soou como uma sentença de morte comercial. Afinal de contas, maldito, na linguagem das gravadoras, é aquele sujeito que vende pouco e não se dobra diante dos pedidos da direção artística das companhias.

O passar dos anos, porém, fez com que o próprio Macalé compreendesse que a pecha de maldito era, no fundo, uma percepção sobre o quão complexas e inovadoras eram suas composições. E Amor Bifurcado é uma prova não apenas de que tais adjetivos são de fato apropriados para defini-lo, como não têm nada de negativo. “Sou um gerador de mistura. Ela me interessa. O Brasil é tudo misturado”, teoriza o artista.

O novo disco tem direção musical do próprio Macalé e direção artística de Rômulo Fróes. O contato entre ambos estreitou-se a partir do pedido inusitado de uma letra. “No fim de 2021, recebi uma mensagem de Macalé cantando uma linda melodia, dizendo que era um sampacançãocarioca, e que gostaria que eu colocasse a letra”, diz Rômulo, que respondeu ao pedido com Simples Assim. “Ele adorou a letra e foi a primeira canção a lhe dar um impulso de se produzir disco de amor, para servir de contraponto, de reação, ao trágico período que atravessávamos.”

“Não sei mais dizer quem eu sou. Eu só sou”, diz o cantor e compositor, parceiro de Wally Salomão, Chacal e Hélio Oiticica

Uma vez convidado para assumir a direção do musical do disco, Fróes começou a recrutar os músicos, como o guitarrista Guilherme Held – “um discípulo de Lanny Gordin”, comemora ­Macalé, fazendo referência ao guitar ­hero do ­Tropicalismo –, o cavaquinista Rodrigo ­Campos, o baixista Pedro Dantas, o baterista Thomas Harris e o pianista ­Cristóvão Barros, que fez uma oposição suave ao samba alternativo do grupo de instrumentistas de São Paulo.

Para celebrar o amor, Macalé contou ainda com parceiros de sempre, como o poeta José Carlos Capinan, autor de A Arte de Não Morrer, composta durante a pandemia. “Ele teve um problema de saúde muito sério naquele período. Quando sarou, postou o poema A Arte de Não Morrer em suas redes sociais. Eu, então, disse: ‘Esse é meu’”, diverte-se Macalé.

Outro parceiro bastante celebrado é Ronaldo Bastos, com quem criou O Amor Vem da Paz e Mistérios do Nosso Amor. “Há tempos queria compor algo com ele”, diz. Coração Bifurcado chama atenção também pela presença de três vozes femininas fortes. Maria Bethânia está em Mistérios do Nosso Amor e Nara Leão é a voz de Amo Tanto – canção tirada de um disco gravado por Nara em 1966 – enquanto Simples Assim ganha a emoção de Ná Ozzetti.

“Era para ter Maria Bethânia e Gal Costa juntas no mesmo disco. E elas não saberiam da presença da outra no álbum”, confessa Macalé. Gal – a quem o disco é dedicado – morreu antes de aceitar o convite. Macalé então atendeu à sugestão de Rômulo e chamou Ná, uma das mais fiéis seguidoras da vocalista baiana. Já Bethânia foi um belo reencontro.

Macalé, hoje, não só deixou de ser “maldito” como tem recebido guarida da nova geração. Besta Fera, por exemplo, traz a assinatura do criativo guitarrista Kiko Dinucci. “Eles fazem uma coisa supercriativa e superprofissional e me retroalimentaram com a juventude deles”, celebra.

E mesmo o pretenso “não comercialismo” do autor carioca cai por terra diante de álbuns como Quero Viver Sem Grilo – Uma Viagem a Jards Macalé, de 2020, no qual a cantora baiana Emanuelle Araújo dá um tom pop a canções como Farinha do Desprezo e Hotel das Estrelas.

“Macalé é dotado de irreverência e coragem e sempre provocou movimentos. Não à toa, aliou-se a uma turma revolucionária de parceiros que norteiam suas canções: Wally Salomão, Capinan, Chacal, Rogério Duarte e até o artista plástico Hélio Oiticica. Ele deixou um rastro de poesia e revolução estética na nossa música brasileira”, diz Emanuelle.

Agora, Macalé está criando uma banda formada apenas por mulheres para acompanhá-lo na turnê de Amor Bifurcado. “Serão as Macaléias ou Macaletes. É uma espécie de homenagem ao Ray Charles, que tinha as Raelettes, e ao Itamar Assumpção, que criou As Orquídeas do Brasil”, diverte-se. Além disso, sua mulher, a cineasta Rejane Zilles, prepara um documentário baseado na colaboração entre Macalé e Hélio Oiticica: “Não sei mais dizer quem eu sou. Eu só sou”. E assim será. •

Publicado na edição n° 1258 de CartaCapital, em 10 de maio de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O caminho da prosperidade’

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