Cultura

Besta Fera, o disco mais paulista de Jards Macalé

Em seu mais recente lançamento, o artista carioca reflete sobre o breu que se abateu sobre o Brasil

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Aos 76 anos, o carioca Jards Macalé segue os passos de Elza Soares e faz de Besta Fera seu disco mais paulista, sob influência e parceria de artistas paulistas de gerações mais recentes, como Kiko Dinucci, Thomas Harres, Juçara Marçal, Rodrigo Campos, Romulo Fróes, Clima e Tim Bernardes. Ironicamente, a faixa de abertura, Vampiro de Copacabana, recria um Rio de Janeiro noturno e soturno que se assemelha mais à Gotham City imaginada por Macalé e Capinan em 1969, tempo de “puro breu” e “olhos de sangue” equivalente ao tempo de hoje.

Feita a pequena malandragem com o Rio, Besta Fera adentra a São Paulo de Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção pelo Buraco da Consolação (vamos pro fundo do poço), rumo às Trevas paulistanas (e brasileiras) que ocupam a maior parte do álbum. Trevas/ trevas/ treva mais negra sobre homens tristes/ me calo, canta, antes de submergir entre sons subaquáticos, não sabemos ao certo se num ato de entrega, de resistência ou misto de ambos. A faixa-título retrata os dias que correm e o estado de espírito de quem nos acha  meio culpados por tudo isso que está aí: A ignorância dos homens destas eras/ sisudos faz ser uns, outros prudentes/ que a mudez canoniza bestas feras/ (…) todos somos ruins, todos perversos.

Besta Fera lembra bastante o Macalé da “morbeza romântica” de 1974, que mantém o romantismo (o amor salva em Buraco da Consolação), mas troca “morbeza” por “torpeza” (como diz a faixa-título) e flagra o “faquir da dor” algo conformado e conformista, talvez um pouco como cada um de nós, como afirma em Longo Caminho do Sol: Hoje eu quis queimar/ mas não queimei/ a brasa quente, amor/ eu mastiguei/ feito faquir da dor/ eu aguentei.

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O desgaste da lida transparece em faixas aparentemente entregues como Meu Amor Meu Cansaço, mas o humor plutoniano perturba-se nas duas últimas canções, Limite e Valor. A primeira traz parceria masculino-feminina com Ava Rocha, filha do antigo colega (pré-)tropicalista Glauber Rocha e repõe Macalé no lugar que lhe é de direito, não maldito, mas à beira, à margem, na beirada: À beira do abismo/ à beira de tudo/ (…) à beira do suicídio/ à beira da despedida. Na última, Macalé reflete comoventemente sobre o valor das canções que vem compondo há mais de cinco décadas: Conheço bem quem me quer bem/ e sei quem me quer mal também/ quem ri de mim, quem me convém.

O conjunto das canções, sobretudo Limite e Valor, rima bem com a capa trevosa de Besta Fera (foto), criada como testamento por Cafi, fotógrafo de álbuns emblemáticos como o Clube da Esquina (1972) de Milton Nascimento e Lô Borges. Acometido pela pulsão de morte, Macalé fez um disco que é a cara do Brasil de 2019.

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