Cultura

‘Eu preciso de luz e de trevas’: Letrux em uma viagem por Paris e além

Conhecida por seus álbuns e poemas, a cantora quer descrever a si mesma

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No ano passado, Letícia Novaes, a Letrux, passou como um raio de luz por Paris. A cantora, que também é atriz, poeta e compositora, lançava o documentário Letrux: viver é um frenesi no 25º Festival do Cinema Brasileiro de Paris.. 

Conhecida por seus álbuns Em Noite de Climão (2017), Aos prantos (2020) e o recente Letrux como Mulher Girafa (2024),  Letrux quer descrever a si mesma. No filme, as primeiras palavras que ela diz são: “Eu sou mulher”. Letícia é uma mulher tão singular quanto plural. Tive a chance de encontrá-la para uma conversa muito especial. No dia, fui vestida de verde e rosa, por acaso. Ela disse, enquanto subíamos andares por um elevador, que essas são suas cores preferidas. 

Publicamos essa entrevista cheia de boas referências femininas, não por acaso, no dia 8 de março, o Dia Internacional das Mulheres. Escutem a fera Letrux. E leiam, a seguir, um pouco do seu frenesi.

CartaCapital: Quando perguntaram se considerava o filme uma autobiografia, você respondeu que não dá para ser um só personagem. Apesar de a Letrux ter um caractère, você parece estar sempre se criando, sendo outros, sendo várias…

Letrux: Sim, sempre gostei. Eu fui estudar teatro porque tinha alguma coisa em mim que não bastava. Quando criança, eu não queria ser atriz, não queria ser cantora, eu não queria ser nada. Sei lá, eu queria ser juíza, porque eu tenho um senso de justiça fortíssimo… Olha que louco, esquisitíssimo. Só que, claro, a personalidade vence esse querer. Minha personalidade era assim: completamente palhaça. Eu imitava professores e eu sofria bullying no colégio. Foi bem pesado, mas era muito engraçado. Será que eu era engraçada porque sofria bullying? Jamais saberemos. Mas acho que, antes do bullying na escola, eu já era cômica na família, eu já era a prima “figura”, que botava uma peruca no Carnaval, fazia vozes e imitava os outros. Então, foi mais forte do que eu. 

Arte é entretenimento, mas também há uma força política na arte. Então, eu me utilizo.

Aí, fui fazer faculdade de letras porque eu gostava de ler e escrever. Cheguei lá e foi um clima de depressão horrível, uma coisa morta, sabe? Minha mãe, muito sensível, falou “Letícia, te matriculei num curso de teatro”. No primeiro dia, fui tomada por uma sensação indescritível. Não falei “vou ser atriz”, mas falei “esse lugar me interessa”, esse lugar vibra parecido comigo, e as pessoas também. Essa sensação foi ótima, porque no colégio tinha um monte de gente tradicional e eu me sentia deslocada. Eu sofria muito bullying e não fui feliz lá, tenho péssimas lembranças, uma ou outra boa: era sempre uma professora de redação e de literatura que me salvava. E, no teatro, eu falei “opa, aqui tá a minha galera”. E, aí, eu comecei a tocar violão também. As duas coisas são muito paralelas: eu comecei a ter diário, a tocar violão e a fazer teatro de uma só vez. Então, não fui atriz ou cantora primeiro, eu não sei, foi um Big Bang que estourou: foi tudo ao mesmo tempo. E, agora, 20 anos depois, estou colhendo os frutos de uma jornada artística. Meu primeiro show foi em 2005 como Leticius, depois Lettuce e agora Letrux. Sou cheia de alcunhas, apelidos. Meu nome é Leticia Novaes. Acho uma coisa muito séria, os apelidos me protegem. A música é um lugar onde eu brinco, apesar de ser sério: eu gosto dessa dicotomia.

CC: Você está sempre brincando com as palavras, mesmo quando as letras são sérias ou falam de dor, tem uma brincadeira ali dentro…

LL: Eu gosto do bom humor, mesmo falando sério. E eu sou assim com as pessoas que eu amo. Eu posso estar chorando e olho uma coisa engraçada na minha visão periférica e já faço um comentário dando risada. E a pessoa fala “como você consegue no meio desse drama”? Sobre música sem literatura, eu acho que não dá. No meu caso, eu não consigo fazer música sem literatura. Às vezes me perguntam quem me inspirou para fazer tal música, qual a referência, e muitas vezes não é outro cantor ou cantora, mas um livro. Inclusive, acabei de ler o livro Escute as feras da antropóloga francesa Nastassja Martin. Ela foi atacada por um urso e fez um depoimento super profundo, que eu achei muito inspirador. Então, tem música que nasce através da literatura, nem sempre a referência é outra música. Eu amo Maria Bethânia, sou devota, amo Marina Lima, Rita Lee, Patti Smith, Nina Simone…Eu posso citar muitas mulheres. Eu tenho esse repertório de mulheres que eu admiro, mas nem sempre significa que eu fiz uma música através da inspiração com outra musicista. Pode ser com a literatura. Então, para mim, está muito ligado. Quando vejo algum show instrumental, contemporâneo, sem letra, preciso estar mais preparada, porque o meu barato mesmo é letra.

Quem não se investiga perde muita coisa sobre si

CC: Depois de Em Noite de Climão veio Aos prantos. Você não nega a felicidade, nem a tristeza. Por que?

LL: Por que não negar a tristeza?  Acho que as pessoas são uma geração muito bolinha, remédio. Na minha época, eu lembro que algumas crianças já tomavam ritalina e acho que minha mãe e meu pai tiveram uma percepção de que era bom eu enfrentar o tédio. Falamos muito sobre isso, pois hoje há muitos pais que ficam desesperados quando a criança está entediada. E eu tive muitos momentos criativos através do tédio quando eu era criança. O tédio pode ter uma melancolia, um “fazer nada”, um vazio. Só que, no meu caso, isso fez parte de mim. 

Eu comecei criticando o remédio, mas entendo totalmente quem precisa de uma ajuda com medicação, eu respeito, tenho algumas amigas que já precisaram e eu mesmo durante a pandemia tomava algumas coisas para dormir. Mas acho também que a gente não pode ficar dopada, num torpor. 

Acho que ser feliz é muito difícil, então, eu meio que aceito que eu terei momentos de alegria e de furor ao longo da vida, como quando eu vou à praia e dou um mergulho bom, quando eu vi a exposição do Matisse hoje e fiquei pensando nele pintando e se inspirando com as cores…Só que isso são momentos destacados.  No fundo, existir no planeta Terra é muito triste. A gente é a única espécie que paga para estar viva, que paga com uma coisa inventada. Os animais pagam com sangue, corpo…a gente também, de alguma maneira, é bem selvagem. O próprio Rio de Janeiro é um lugar muito selvagem, é bravo. Então, fingir que está sempre tudo bem não rola. Dá para ter um equilíbrio, pois eu preciso dos dois: eu preciso de luz e de trevas. 

CC: Você se admite bi e fala do prazer feminino e entre mulheres com liberdade. A sexualidade já foi tabu para você?

LL: Sim, claro. É todo um trabalho. Acho que eu só fui assumir para mim mesma que eu era bi aos 35 anos. Tinha uma noção, vivi coisas, mas pensava que era uma fase, besteiras. Mas com 35 eu pensei: não é não. E acho que tudo isso é um processo de psicanálise também. Eu falo muito de psicanálise porque eu acho que quem não se investiga perde muita coisa sobre si.  E eu sou dessas que me investigo, e não é fácil, você percebe coisas complicadas, contradições, e a sexualidade sim sempre foi um tabu. Eu sou de uma família tradicional na Tijuca que é um bairro com uma tendência “careta” no Rio. E só com a arte e com psicanálise eu consegui ir rompendo com alguns moralismos, algumas travas. Então, algum tipo de autoconhecimento ajuda a encarar as questões de sexualidade.

Antes de lançar Em Noite de Climão, que tem músicas que falam de relação entre duas mulheres e outra coisas mais, eu me questionei se deveria prevenir meus pais. Mas pensei, eu já estou com 35! Eu não avisei nada, e eles amaram o disco. Depois do show de lançamento, eu fiz uma festinha na casa deles que era ao lado do teatro. Eu lembro do meu pai se divertindo com as músicas e pensei “é isso aí, somos adultos”. Acho que isso o tempo traz, a psicanálise trouxe. Mas claro que não é fácil ser mulher. É uma coisa difícil que envolve tudo em sociedade. São várias questões, não só em relação à sexualidade, mas ao etarismo, à misoginia… Parece que estamos evoluindo, mas quando retrocedemos, não voltamos uma casa, voltamos ao início do jogo.

CC: Você fala bastante de terapia, dos sonhos… Como isso chegou na sua vida? 

LL: A primeira vez eu que fiz análise, foi até louco, acho que eu falei para minha mãe que eu queria “alguma coisa” e ela também sentiu que eu tinha uma “coisinha” e conseguiu um contato com a mãe de uma amiga. E eu fui. Foi uma primeira conversa, eu tinha 17 anos. Quando eu voltei pra casa, eu logo soube que a minha prima tinha morrido. Eu lembro que até falei assim “parece até que eu fui fazer análise porque estava enfrentando um luto”. Mas eu tive essa primeira conversa um dia antes da notícia. Parece que meu corpo ou alguma intuição disse: olha, vai para algum lugar porque você vai precisar dessa parada. Fiquei um tempo nesse processo.

Depois, mais velha, com 25, eu retomei com outra analista porque eu tinha várias questões com bullying, com meus dois irmãos mais velhos, com a morte da minha prima. Eu sei que todo mundo tem questões, mas eu ainda estava muito travada na vida. E hoje, há 4 anos, eu continuo com outro analista. É horrível e maravilhoso ao mesmo tempo. E a maioria dos meus conhecidos faz alguma espécie de terapia, então é um assunto que eu gosto e que faz parte da minha rotina. Como minhas músicas são muito cotidianas e não têm nada muito rebuscado, eu sempre gosto de trazer esse assunto para as letras. E quem faz terapia, psicanálise, ama essas partes no show e se identifica.

Sobre o sonho, acho que eu sempre fui muito daydreamer. E sempre anotei meus sonhos, ficava viajando, tentando entender algum recado. Realmente, eu acho muito fascinante que a gente vive o dia e morre toda noite por oito horas. O que é isso? É muito esquisito, e muito maravilhoso!

Só fui assumir para mim mesma que era bi aos 35 anos

CC: No show, você disse algumas vezes “livrem-se da culpa” …

LL: É uma coisa que eu falo às vezes, porque acho que muita gente vai no meu show e tem essa sensação. Acho que o primeiro disco que eu fiz solo, Em noite de climão, foi um disco muito assim: gente, chega de culpa. Eu estava com 35 anos e num processo muito de ser quem eu sou. O David Bowie fala isso “é tão bom envelhecer, tão bom ser quem a gente é”. E, mais nova, eu ficava usando algumas máscaras. Claro que a gente vai usar máscaras para o resto da vida. Mas teve uma hora que eu falei não aguento mais, eu preciso chegar perto de algo que eu sei quem eu sou. Nós criamos um mise-en-scène às vezes desnecessário.  Então, eu falei: esse disco precisa ser sem culpa, sem máscara. E deu no que deu. Em Noite de Climão foi amplificado para muita gente. Acho que eu gosto de falar essa frase “livrem-se da culpa” porque ainda vejo algumas pessoas presas a isso. E eu proponho “vamos dançar!” “dancem esquisito!”, e digo: livrem-se da culpa.

CC: Você tem uma presença, é grande, alta. Como é a sua relação com o seu corpo e como ela mudou com o tempo? 

Uma das coisas que me faz me sentir bem aqui em Paris é que eu vi as mulheres muito mais naturais do que no Rio de Janeiro, onde a harmonização facial está tão alastrada. Não sei se posso falar por todo o Brasil.  Até me vejo aqui mais velha, me sinto bem aqui entre pessoas sem tantos procedimentos.  Eu tenho o exemplo da minha mãe, que nunca fez nada e eu a acho linda. Estou fazendo 41 anos, eu gosto de me cuidar, de me exercitar, gosto de fazer pilates, gosto de nadar, mas não vou fazer nada para agradar ou para correr atrás do tempo. Eu passo cremes, mas eu sempre brinco falando que estou passando esse creme para que quando eu tiver 68 eu pareça ter 67. Por que, qual a diferença? Então, eu passo quase com uma sensação de carinho, mas não passo achando que o milagre vai acontecer. Acho que nunca farei nada de muito radical. Gosto de olhar o tempo na minha cara, sou filha de Cronos, o tempo está do meu lado e eu quero ver essa trajetória, eu quero me ver, quero ver o que vai acontecer com minha cara nessa trajetória. Eu não quero correr atrás do tempo… Que cansaço! Eu quero estar do lado do tempo, e vamos lá, tempo! E sobre o bullying que sofri na infância relacionado ao fato de eu ter sido uma menina grande, hoje eu gosto. Aprendi a gostar, porque eu me utilizo muito do meu tamanho no palco. Aprendi também a entender que eu chamo atenção. Acho que quando era adolescente isso era ruim, porque me zoavam, me chamavam de magra, nariguda. Hoje, eu adoro meu nariz, adoro! É louco, né? Tudo que era uma zoação, eu tomei para mim e falei “Vocês estão loucos? São as minhas melhores características!”

CC: Presumo que está melhor ser artista agora do que durante o governo Bolsonaro? Como artista, qual sua relação com a política? 

LL: Sinto esperança total. Com o Lula eleito, a gente recuperou o fôlego. Não senti censura exatamente como aconteceu no golpe militar de 64, mas teve algumas ameaças na internet de haiters bolsonaristas. Mas eles são muito robôs tanto fisicamente (pois muitos eram literalmente robôs que botaram para funcionar) quanto psiquicamente, a vida deles é robótica, automática. Então, no caso de uma cantora como eu, acho que eles nunca vão correr atrás de mim realmente. Claro, a Marielle foi assassinada e existem ameaças muito piores. Pessoas como a Marielle sofreram muito mais. Então há sim uma gente perigosa, mas acho que no meu caso de artista independente é uma gente mais covarde, que quer botar um terror. Com o Lula, parece que eu estava me afogando e voltei a superfície para respirar. E vou continuar nadando agora.

Não sou filiada ao PT, mas reconheço todas as melhorias. Eu sou uma pessoa que reconhece que o Lula foi o melhor presidente que a gente teve na história. E é inegável todo o horror que a gente viveu nesses últimos anos. Inegável não falar sobre isso, principalmente nos shows da época da eleição. Vou ficar calada? Às vezes, eu tocava para meu nicho, minha bolha. Mas quando eu tinha oportunidade de tocar em um festival grande, em praça pública, passando por um governo fascista, não vou falar nada? Acho que a arte e a política caminham juntas. E, se eu tenho o poder de ter um amplificador, acho mal proveito de quem fica só no “vamos nos divertir”. Arte é entretenimento, mas também há uma força política na arte. Então, eu me utilizo.

CC: E o amor para você, hoje? 

LL: Cada vez mais, eu acho que é algo muito misterioso. Eu nem sei explicar por que eu amo quem eu amo, porque além de toda obviedade (gosto, aparência, inteligência, etc.), tem que ter um mistério. É uma sensação maior do que a explicação, é quase uma coisa irracional. Eu amo, eu amo… Amor para mim é mistério também. Tem uma história maravilhosa do Gabriel García Márquez, quando alguém perguntou para ele como é estar casado há 50 anos ele falou “olha, têm dias que eu acordo e olho pro lado e falo quem é você?” Eu acho maravilhoso. Acho que esse mistério me intriga no amor. 

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