Cultura

cadastre-se e leia

Entre a fantasia e o real, o horror

A escritora Adeline Dieudonné constrói, a partir do olhar infantil e de uma atmosfera opressora, uma trama inesperada sobre os recônditos da violência doméstica

A autora belga ganhou vários prêmios com seu romance de estreia - Imagem: Jean-François Robert
Apoie Siga-nos no

Na nossa casa tinha quatro quartos. O meu, o do meu irmão caçula Gilles, o do meus pais e o dos cadáveres.” É com essa frase que a menina narradora nos atira ao ambiente no qual se passa a inesperada trama familiar de A Vida Real. Os cadáveres eram os animais empalhados caçados por seu pai – entre eles, uma hiena que ela apostava estar viva e cujo riso era até capaz de ouvir. “A morte morava na nossa casa.”

O primeiro romance de Adeline ­Dieudonné, que vive em Bruxelas, foi lançado em 2018 e venceu, naquele ano, vários prêmios literários voltados a livros em língua francesa. Publicado em outros 20 idiomas, ganhou há pouco tempo tradução para o português. O impacto dessa estreia deve-se, muito provavelmente, à atmosfera opressora criada a partir do olhar infantil, no qual real e fantástico, medo e sonho se entrelaçam de maneira original.

No centro da história estão a pequena heroína protagonista, seu irmão, Gilles, de 6 anos, sua mãe, resignada e muda, e seu pai, um caçador contumaz e um homem, dentro de casa, violento. Quando a narrativa começa, a menina tem 10 anos. Quando termina, ela tem 15.

A VIDA REAL. Adeline Dieudonné. Tradução: Letícia Mei. Editora Nós (209 págs., 63 reais)

E foi aos 10 anos que ela viveu o episódio traumático que será o leitmotiv do livro: seu irmão pede ao sorveteiro que acrescente chantilly ao sorvete de baunilha e morango e, nesse momento, o sifão explode na cabeça do homem, matando-o. A partir dessa cena, o laço entre os dois irmãos vai se esgarçar. “Eu me perguntava que garoto ele seria se o acidente do sorveteiro não tivesse acontecido”, diz, a certa altura, a narradora.

A descrição do menino traz algo do livro Precisamos Falar Sobre Kevin, de ­Lionel Shriver. Já as cenas assustadoras, como uma passada na floresta escura com o pai caçador, parecem ter como inspiração distante o universo de Stephen King.

Embora Adeline Dieudonné possa ser criticada por ter criado um pai ao qual faltam nuances dramáticas e uma mãe excessivamente vazia, a opção por uma escrita que flerta com o irreal dilui essa possível fragilidade de sua construção ficcional.

Aquele homem, afinal de contas, é o monstro que a menina vê – a vida doméstica é terrível para ela, e torna-se, assim, terrível para nós. Ela deseja, por exemplo, ser Marie Curi e saber tudo sobre ciência, para poder viajar no tempo e fazer com que seu irmão volte a ser o que era antes do acidente do sorvete.

Entre a fantasia, o terror e a vida ­real – ou a vida “verdadeira” –, Adeline nos conduz a um lugar exageradamente cruel ou, talvez melhor seria dizer, cruelmente verdadeiro. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1228 DE CARTACAPITAL, EM 5 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Entre a fantasia e o real, o horror”

Leia essa matéria gratuitamente

Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo