Cultura

Encontro Marcado

O dia em que conheci um escritor num botequim no centro da cidade

Wander Piroli não tinha cara de escritor. Cultivava um vasto bigode, acompanhado de um sorriso permanente
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Depois de quase uma década sem pisar no Brasil, a primeira pessoa que procurei quando voltei foi Wander Piroli. Estava encantado com O Menino e o Pinto do Menino, livrinho infantil que um dia chegou pelo correio na Rue de la Roquette, presente de Marco Aurélio. Tão encantado, que mandei uma carta pro Piroli e ele respondeu rapidinho, surpreso ao saber que o menino e o pinto do menino tinham ido tão longe, chegado a Paris. Tivemos uma curta e emocionada troca de correspondência e ai eu voltei.

Estava assustado. Deixei o aeroporto de Zurique coberto de neve e cheguei ao Galeão numa terça-feira de carnaval, Rio 40 graus. Estava assustado com aquelas mulheres de bustiê no aeroporto da Cidade Maravilhosa, seminuas, diferentes das suíças com os seus mantôs pretos e elegantes na Zurique que ficou pra trás, ao som de Béla Bartók.

Havia combinado com Piroli de encontrá-lo assim que chegasse, para  conhecê-lo pessoalmente. Marcamos um encontro naquela noite mesmo, num boteco perto da redação do jornal Estado de Minas, no centro de Belo Horizonte. Oito e pouco da noite eu estava lá, sentado numa mesinha dessas com toalha florida de plástico e, em cima, paliteiro, saleiro e uma lata de óleo Maria. Em poucos minutos, Piroli chegou. 

Levantei a mão e ele logo me reconheceu. Veio abrindo caminho entre as mesas e me deu um grande abraço. Tinha nas mãos o livro A Mãe e o Filho da Mãe, que ganhei de presente para fazer companhia ao menino e ao pinto do menino.

O boteco estava enfumaçado e cheirava a linguiça calabresa. Piroli tomou a primeira providência, mandou descer uma Malt 90 estupidamente gelada. Enquanto fazíamos um tintim em copos americanos, o garçom trazia um prato transbordando de linguiça calabresa, aquela que espalhava um cheirinho bom pelo ambiente. Nos regalamos tomando cerveja e comendo aquela linguicinha com pãozinho francês.

Falamos de Paris, de Jean-Paul Sartre que havia nos deixado recentemente, da minha infância no bairro do Carmo, da infância dele na Lagoinha. Coisas de Belo Horizonte. Contei a ele dos pintinhos de um dia que ganhava todo final de ano quando comprava um Vulcabrás novo na Sapataria Elmo. Era mais ou menos a história que ele havia contado e me emocionado tanto naquele livro, presente do meu primo.

Wander Piroli não tinha cara de escritor. Cultivava um vasto bigode, acompanhado de um sorriso permanente. Observei que suas mãos eram gordas e grossas, rudes mesmo. Fiquei ali pensando que foram com elas que ele datilografou, talvez numa velha Remington, Os Rios Morrem de Sede, a história do Rio das Velhas, aquele que me acompanhava a caminho de Sabará, secando a olhos vistos.

Wander Piroli contou que gostava de pescaria, de pinga, de torresmo, de jiló à milanesa e de sinuca. Meu mundo não era mais esse, mas foi Wander Piroli que me acordou. Estava de volta ao Brasil, o País que precisava redescobrir.

Levei de presente pra ele um conto que havia escrito pouco antes de deixar Paris e uma caixinha de Spiritual Sky, um incenso da Índia, já que em uma de suas cartas havia falado das terríveis muriçocas que infestavam sua chácara. Achei que aquele incenso indiano poderia, além de perfumar seu refúgio, espantar as malditas muriçocas.

Piroli trabalhava no Jornal de Shopping e me encomendou um texto sobre minha volta ao Brasil. Cheguei em casa e fui direto pra maquina de escrever, não podia falhar. O texto foi publicado no domingo e começava assim:

“Tenho a impressão, meu irmão, que apaguei a luz do aeroporto de Orly, que fui o último exilado a entrar no avião da Varig com destino a Belo Horizonte, depois de anos e anos de saudade. Durante as doze horas de voo, passou  pela minha cabeça todos aqueles cartões postais coloridos da Mercator que não existiam mais. A Avenida Afonso Pena cheia de Opalas, Brasílias  e Chevettes, o Mineirão, a Lagoa da Pampulha, o Parque Municipal e uma praça chamada Liberdade.”

(Leitura recomendada: “O Matador” e “Três Menos Um é Igual a Sete”, de Wander Piroli, que acabam de ser editados pela Cosac Naif)

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