Cultura

Em ‘Parasita’ e ‘Coringa’, violência do sistema é retribuída com fúria

Os personagens dos dois filmes frequentam os porões, os becos sujos, as áreas inundadas

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Dois dos mais relevantes filmes de 2019 partem do conceito de luta de classes para abordar outro fenômeno cada vez mais real: a inviabilidade do sistema capitalista. Parasita, do sul-coreano Bong Joon-ho, e Coringa, do americano Todd Phillips, guardam semelhança não só no reconhecimento pelos prêmios conquistados, mas na coragem de projetar, com olhares singulares, sobre o que aconteceria na sociedade a partir da revolta dos oprimidos (ou reprimidos, se preferirem).

A violência é o substrato dos dois longas, mas eles avançam muitas camadas sobre essa questão. Coringa, que ganhou o Leão de Ouro do Festival de Veneza, continua lotando salas de cinema na sua terceira semana no Brasil. É uma obra sintomática de um estágio pós-civilizatório da humanidade, com ares cada vez mais idiotizados. O assessor especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais, Filipe G. Martins, culpou a esquerda por Coringa: “É uma demonstração do que a anomia social e o ressentimento esquerdista podem fazer com uma mente perturbada”. Martins encarna aquele sujeito que vê, mas não entende o filme.

E eis que chega Parasita, vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes, com previsão de estreia em 7 de novembro e exibição nos dias 18, 19 e 27 de outubro, durante a 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O longa é resumido, pelo próprio diretor Joon-ho, como uma tragicomédia familiar de um casal e seus dois filhos que fazem parte da camada mais baixa da sociedade urbana sul-coreana. Ele discute temas complexos como a unidade familiar, o status social, a aspiração e o materialismo, simbolizados pela concepção feudal, pré-capitalista, portanto, de que é preciso ter classes de servos atendendo os que podem pagar.

Parasita seria excepcional por suas metáforas, mas Joon-ho (que dirigiu Okja e Mother – A busca pela verdade) não depende delas para contar sua história. Ele prefere estabelecer outro tipo de narrativa, na qual é difícil não criar empatia com os protagonistas. O filme começa com uma família pobre que sobrevive em áreas inundáveis da capital Seul, buscando sinal furtado de Wi-Fi aos vizinhos. O patriarca Ki-taek (Song Kang-ho, famoso ator na Coreia do Sul) aconselha: “Mantenham seus celulares no alto”. Ele não é um hacker, mas o filho Ki-woo (Choi Woo-shik) e a filha Ki-jung (Park So-dam) obedecem respeitosamente o pai desempregado. A mãe, Chung-soon (Chang Hyae-jin), é uma senhora amargurada, que monta, de forma desleixada, caixas de pizza de papelão em busca de trocados. São pessoas orgulhosas e espertas, cientes de que há um preço a ser pago pela sobrevivência. Sentem-se agradecidos pela fumegação vinda da rua para “dedetizar” a sua casa. É nesse porão que podem mirar a vista para a rua. Mais para a frente no filme, o diretor refaz essa cena, porém dentro de uma mansão com vista para um jardim deslumbrante,  nas colinas onde vivem os endinheirados. Os Kim chegaram lá por vias tortas.

Como seres parasitas, a família Kim consegue a oportunidade de dar uma virada na vida quando um amigo do filho Ki-woo se muda para os Estados Unidos. Ele oferece a sua vaga de tutor da filha adolescente de um empresário novo-rico, que trabalha em uma companhia de tecnologia. Para conseguir o emprego, a irmã de Ki-woo falsifica documentos em programas de design gráfico. Em pouco tempo, a transgressão é amplificada quando o clã dos Kim se aproxima da família milionária, os Park. É ao friccionar os mundos dos pobres e ricos que o diretor Joon-ho convida o público a enxergar o mundo a partir da ótica dos serviçais. Pouco ou nada se saberá a fundo sobre os donos daquela suntuosa obra arquitetônica erguida em pedra lisa e vidro transparente. Apenas se revela que eles têm preconceitos para com os pobres, mas se compadecem deles, desde que isso não afete a harmonia luxuriosa de suas vidas. Tudo poderia terminar bem para os Kim e os Park, se essa estrutura farsesca não tivesse sido erguida sobre segredos submersos dessas famílias ou do país.

E é aí que Parasita, na segunda parte da história, revela um contrato social desigual que o capitalismo tende a normalizar. Só quando a família oprimida se enxerga no lugar da do rico é que as distinções de classe se revelam realmente o que são. A riqueza privada, defendida pelo discurso da meritocracia, vai bem até a página 2, quando os Kim descobrem que até a própria vida que levam perdeu o seu valor absoluto. E, sem reviravoltas mirabolantes da história ou dos personagens, a mensagem do filme (sem spoiler) é a de que, talvez, a violência sofrida necessite de um revide. Mas é no filme Coringa que essa relação é esgarçada, ainda que com sinais invertidos.

Incômodos. Bong Joon-ho e Todd Phillips recorrem à violência para questionar como a sociedade alimenta uma legião de parasitas oprimidos

Todd Phillips partiu em busca da origem do vilão das histórias em quadrinhos, cujos elementos foram extraídos de A Piada Mortal (The Killing Joke, de 1988, no qual o personagem é um ator sem sucesso), mas não segue o roteiro da graphic novel. Coringa seria apenas um homem reprimido, sem que ninguém, exceto sua mãe (Frances Conroy, no papel de Penny), lhe dê a devida atenção. O palhaço profissional problemático e aspirante a comediante de stand-up Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é o retrato de um mundo sem saída para gente sem saída. Como nas aventuras de Batman, Gotham City é um bairro-escória que, em 1981, se vê às voltas com uma epidemia de super-ratos. São parasitas, é claro, que simbolizam a decadência do capitalismo. Haveria supergatos, como diz o âncora do noticiário na tevê, para combater essa praga? Os de cima, claro, se apressam em apresentar a solução para os de baixo.

Uma das leituras que se fazem sobre Coringa é a de que homens brancos solitários e sem espaço no mundo podem ser atraídos por ideologias odiosas que brotam de comunidades enfurecidas alimentadas pela negação aos seus direitos. É impactante que a risada peculiar do protagonista não seja um sinal de alegria, mas um trauma psicótico que carrega consigo. Quem pode rir nos dias de hoje? A abordagem do diretor (de Cães de Guerra), que pode ser vista como confusa e negativista, não advoga transmitir uma mensagem esperançosa. Quando Arthur percebe que entre ele e o trumpiano Thomas Wayne, o pai do Batman e candidato a prefeito de Gotham City, existe mais do que portões altos de mansões, a desesperança toma conta de sua mente. E daí, do engano de um personagem marginalizado, zombado e ignorado por todos, eclode uma rebelião dos outros oprimidos, que no filme ganha expressão em uma turba de revoltosos sem liderança, sem causa, que saem às ruas escudados por meio de máscaras de palhaços.

Pergunta o Coringa: “Sou só eu ou esta cidade está ficando cada vez mais louca?”

Arthur está longe de ser um herói, e Batman ainda é pequeno demais no filme de Phillips para salvar a população. O diretor nos explicita que ele é alguém cuja ambição seria apenas ser convidado para o talk-show Live with Murray Franklin, um comediante vivido por Robert De Niro. A aparição do veterano ator é certeira e uma homenagem ao filme O Rei da Comédia (1982), de Martin Scorsese, em que ele contracena com Jerry Lewis e mostra até que ponto os indivíduos se sujeitam para aparecer na tevê.

A transformação de um fora do sistema solitário em um assassino frio faz de Coringa uma obra dubiamente irônica, com maniqueísmos tortos. Favorecida pelo show de interpretação de Phoenix, em uma performance altamente física, a película não faz apologia da violência, mas recorre a ela para questionar o status quo. A trilha sonora, que reforça a ironia, inclui Frank Sinatra (That’s Life e Send in the Clowns) e a banda Cream (White Room). Uma das cenas icônicas do longa é quando Arthur, cada vez mais desequilibrado, se maquia de palhaço, pinta o cabelo de verde e traz para fora de si o personagem Joker (Coringa, em inglês). Em outro momento, quando busca remédios gratuitos com uma assistente social, Arthur traz à tona a dúvida principal da sociedade doente: “Sou só eu ou esta cidade está ficando cada vez mais louca?” Os parasitas oprimidos têm a palavra.

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