Cultura

Em ‘Gótico Nordestino’, Cristhiano Aguiar usa a fantasia e o horror para retratar o Brasil

O autor, que nasceu na Paraíba, fala sobre seu processo criativo, os desafios de se trabalhar com o conto e de como o gótico o permite falar sobre o Brasil do presente

(Foto: Renato Parada)
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Talvez para um país que se assemelha a uma distopia, como o Brasil contemporâneo, o modo de narrar realista não seja o mais adequado. “Penso que, em tempos de grave crise política e também em uma época na qual parece estarmos presos dentro de um filme distópico, o horror, a fantasia e a ficção científica revelam um potencial acentuado de interpretação da nossa experiência histórica”, diz Cristhiano Aguiar, escritor e professor universitário que acaba de lançar a coletânea de contos Gótico Nordestino (Companhia das Letras, 136 págs., 54,90 reais).

O livro traz nove narrativas, situadas desde o cangaço nos anos de 1930 até um futuro assumidamente apocalíptico. Na coletânea, o autor transita entre diversos gêneros, fazendo comentários ora incisivos, ora divertidos, sobre o estado do País. 

O presente aparece de maneira bastante explícita num dos contos, chamado Lázaro. Nele, algumas vítimas da pandemia de Covid-19 despertam da morte. “Sim, pode vir pegar: o corpo da sua avó acordou”, começa o texto. O que se dá a partir daí é uma narração divertida e perspicaz sobre a situação atual.

Nessa entrevista a CartaCapital, o autor, que nasceu na Paraíba, fala sobre seu processo criativo, dos desafios de se trabalhar com o conto e de como o gótico o permite falar sobre e para o Brasil do presente. 

Confira a seguir.

CartaCapital: O que você acha que seus contos têm a dizer sobre e para o Brasil de hoje?

Christhiano Aguiar: Eles são em primeiro lugar uma narrativa dos conflitos e dilemas vividos pelos meus personagens. Embora Gótico Nordestino possua comentários políticos, trabalhei cada uma das nove histórias com o intuito de que elas possuam diferentes portas de interpretação, sem que sejam alegorias de uma “mensagem” vinculada a algum projeto político específico. Mas há alguns subtemas. Um deles é uma provocação sobre como construímos uma narrativa da identidade nordestina. Outro subtema é a violência, cujas facetas são tanto individuais quanto coletivas, assim como a própria pandemia, que aparece ora disfarçada, ora mais explícita. A dimensão histórica também é proposital. De modo não linear, os contos são organizados para cobrir um período de pouco mais de cem anos da história brasileira, dos tempos do cangaço na década de 1930 até chegar nos incêndios do futuro próximo. 

CC: Você acredita que um gênero como o gótico (assim como a fantasia e a ficção-científica) tem uma capacidade maior de figurar o presente do que um texto estritamente realista?

CA: Amo o realismo, em especial a prosa realista clássica dos fins do XVIII e ao longo do XIX. Neste caso, minhas maiores referências são Jane Austen, Balzac (que eu idolatro) e Machado de Assis (com a ressalva de que não considero toda a obra de Machado classificável como “realismo”). No XX, admiro tanto a prosa experimental de Clarice Lispector, Guimarães Rosa e Virginia Woolf, quanto os grandes narradores do nosso romance de 30. No entanto, para a minha caminhada como escritor, o realismo, ao menos neste momento, se esgotou. Portanto, resgatei todo um conjunto de influências vinculadas às narrativas fantásticas e à cultura pop a fim de viabilizar o livro que viraria o Gótico Nordestino

Abraçar plenamente o fantástico tem sido importante para mim, porque é neste registro que considero ter encontrado uma voz própria. As diferentes vertentes da literatura fantástica são, portanto, os instrumentos que, no meu caso específico, se revelam os melhores para o que você propôs na sua pergunta, para o projeto de “figurar o presente”. Este é só o meu caminho e creio que todos os caminhos são válidos. 

CC: Quando você começou a escrever esses contos? Quanto tempo ficou trabalhando na coletânea? Alguns ali percebemos que são relativamente recentes, como Lázaro.

CA: O primeiro conto da coletânea foi Firestarter, um conto sobre, digamos, caçadores de incêndios, que teve ao menos duas versões anteriores antes de ser publicado em Gótico nordestino. Eu o escrevi em 2018 como uma maneira de metaforizar o que eu enxergava como uma pulsão de autodestruição, oriunda de parte significativa do país, na escolha do projeto de extrema direita que está no poder. Ao mesmo tempo, Firestarter me liberou para voltar a escrever sobre o nordeste, partindo da lembrança das queimas de cana-de-açúcar tão comuns que a gente enxerga quando dirige pelas estradas do interior da Paraíba e de Pernambuco, por exemplo. 

Por fim, o conto foi importante porque eu me abri muito mais à influência da ficção especulativa na minha escrita – no caso, da ficção científica -, já que imagino Firestarter ambientado em um futuro próximo, uma distopia do depois-de-amanhã. Continuei a rascunhar ideias para novos contos e o processo, no caso dos contos que entraram em Gótico Nordestino, se intensificou durante mais ou menos 15 meses, ou seja, todo o ano de 2020 e o primeiro trimestre de 2021. Foi um período de escrita intensa, de angústias, mas também de alegria em desvendar um universo imaginário que estava latente, há anos, dentro de mim.

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