Cultura

Em Cannes, as expectativas minguam

Audiard com drama sobre imigração e Hou Hsiao-Hsien na arte marcial esgotam as fichas mais certas da competição

Em filmes como Dheepan, Audiard não facilita nem suaviza nada, há sempre dor e destruição
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De Cannes

Estamos a apenas três dias da premiação e igual número para fechar a lista de concorrentes a Palma de Ouro, a ser entregue no domingo no Festival de Cannes. Difícil imaginar que haja algum sobressalto com os nomes escolhidos para reta final, de pouco expressão, embora com bons trabalhos anteriores.

Logo mais passa Valley of Love, de Guillaume Nicloux, o quinto e último título francês, quantidade despropositada se se considerar o nível dos filmes. Gosto de La Loi du Marché, embora muitos colegas brasileiros tenham implicado com o tema reiterado da crise econômica que engolfa um desempregado, o declínio de sua situação de classe média, a transformação da moral e dos valores segundo as leis do capital.

 

Não acho que esse seja o objetivo do questionamento de Stéphane Brizet, e sim a ridícula etiqueta corporativa atual que um candidato a trabalho tem que cumprir para atuar. Bem menos defensável, no nível do constrangimento, é Marguerite & Julien, de Valérie Donzelli, sobre incesto entre irmãos e sua persistência em ficar juntos sob uma perspectiva entre atemporal e ao mesmo tempo atual.

Mas voltemos a Nicloux. No ano passado, em Berlim, ele apresentou sua versão para A Religiosa, de Diderot, digna e até certo ponto ousada pelo humor irreverente da personagem de Isabelle Huppert, uma madre lésbica. Huppert volta como sua protagonista ao lado de outro peso-pesado, sem trocadilhos, do cinema francês, Gérard Depardieu. Cheira a obrigação com estrelas da casa a inclusão na seção oficial, como aliás se deu com muitos filmes de diferentes origens e seus elencos internacionais. Esperemos, como sempre, o melhor.

E talvez seja esta alta expectativa o motivo de certa frustração ocorrida nesta manhã com outro “franco-concorrente”, Dheepan. Jacques Audiard é um habitué do festival e se consagrou por aqui em 2009 com o ótimo O Profeta, Grande Prêmio do Júri. Há três anos veio Ferrugem e Osso, e me pareceu injusto o casal de protagonistas Marion Cotillard e Matthias Schoenaerts não serem premiados. Cotillard, inclusive, retorna amanhã à Croisette para representar uma nova versão de Macbeth, ao que parece de época, ao lado de Michael Fassbender.

 

Antes que o filme do desconhecido australiano Justin Kurzel feche o concurso, há ainda Chronic, do mexicano Michel Franco, que já venceu a paralela Un Certain Regard com Depois de Lucia, que não conta com simpatia unânime. Tim Roth lidera o elenco, a confirmar a condição de nomes reconhecidos em produções de realizadores em ascensão.

Júris, e talvez esse, adoram interpretações intensas de atores não badalados, ou mesmo não profissionais, em papéis de resistência. Melhor ainda se fora dos círculos americano ou europeu. Pode bem ser o caso de Jesuthasan Antonythasan no papel-título do filme de Audiard. Não é fácil identificar a origem do Sri Lanka e o estranhamento é convocado à trama todo o tempo quando os franceses, mesmo emigrados, demonstram seu desprezo pelo país que não sabem onde fica.

Mas é de lá que chega, num barco clandestino e com passaportes falsos, Dheepan, sua mulher e filha. Acontece que não formam uma família verdadeira, e sim permaneceram juntos para conseguir a documentação e o ingresso na França. Os familiares verdadeiros morreram na guerra. Dheepan combatia na milícia de resistência ao governo de terror. As mulheres também têm seus dramas. Apenas unidos conseguem apartamento, escola e trabalho num conjunto habitacional da periferia comandado por gangues. É outra guerra, mas o protagonista trará à tona os pesadelos da sua nação com a mesma índole.

Audiard não facilita nem suaviza nada em seus filmes, há sempre dor e destruição, ainda que pessoal, ou do ideal humanista se for o caso, e como sempre faz um drama forte, pulsante. Isso não impede uma certa mão no registro desse tipo de violência comunal, dos lugares distantes dos centros urbanos. É uma visão que pode resvalar no estereótipo e tornar inverosímil uma mudança de rumo, ainda mais quando se trata de pegar em armas para um ajuste final. Enfim, não desaponta. Pelo contrário. 

Como disse em texto anterior, no entanto, Audiard segue na tendência de realizadores estabilizados que em algum ponto perderam a força de impactar. Também é em parte isso que sucede com o chinês Hou Hsiao-Hsien. Em parte porque The Assassin, e sabemos no início do filme tratar-se de “uma” assassina, tem o toque estiloso do realizador que é um dos preferidos do compatriota Jia Zhang-ke.

Desde o início em preto e branco à passagem à cor quando se inscreve o título na tela, há esplendor e riqueza de detalhes a um cenário que sem dúvida necessita desse tipo de tratamento. É a China na antiguidade dos clãs, imperadores, nobres, lutas e complôs de vingança onde Hsiao-Hsien estabelece o retorno de uma jovem exilada e educada por uma religiosa nas artes marciais para matar os tiranos.

Ter um diretor que se dedica sobretudo aos conflitos modernos, como amor e o vazio existencial da juventude, voltado agora ao gênero por excelência do cinema chinês já admite a surpresa. Mais ainda esperar desse encontro positivo uma razão original. Não é, no entanto, o que se vê, embora dificilmente alguém tenha filmado com tamanha poesia e beleza os embates e a vida palaciana.

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