Cultura

Documentário sobre Pelé retoma o debate em torno da postura do ídolo diante do arbítrio

‘Os diretores reavivam a discussão: a passividade política de Pelé seria pior do que o voluntarismo de Neymar no regime bolsonarista?’

Foto: Sandro Baebler/Getty Images/AFP
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Um entrevistador parisiense faz perguntas em francês, mesmo sabendo que o entrevistado brasileiro, que aborda na rua, não entende o que ele diz. Mas o entrevistado fica atento às palavras-chave das perguntas e responde a todas e, embora não se entendam, eles se comunicam. A cena, uma das raridades do documentário Pelé, dos britânicos David Tryhorn e Ben Nicholas, parece sintetizar o primeiro grande passo do Brasil rumo a uma ideia de nação. Mesmo isolado por um desenvolvimento precário, pela instabilidade política, pelo estilhaçamento cultural, o País começava a se sentir autoconfiante e unido pela primeira vez pela força de um esperanto solidário, transversal e mágico, o futebol. 

O documentário inédito Pelé, que estreou no serviço de streaming Netflix na terça-feira 23 de fevereiro, é um esforço biográfico com dupla função: além de apresentar aos desconhecedores uma lenda que já vai ficando esmaecida na memória das novas gerações, o espantoso atleta Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, hoje com 80 anos, põe em debate o papel do ídolo popular num contexto de exceção política, arbítrio e sitiamento das liberdades. Pelé foi amplamente julgado, tanto pela opinião pública quanto pela intelligentsia, por causa do seu comportamento durante a ditadura civil-militar. Mas Tryhorn e Nicholas, os diretores deste novo filme, reavivam a discussão, partindo de um pressuposto que invoca a atualização: a passividade política de Pelé seria pior do que o voluntarismo colaboracionista e eufórico de Neymar ou do surfista Gabriel Medina no regime bolsonarista?

Alicerçado em vigorosas imagens de um país em movimento, em convulsão política e construção social, o filme confronta o próprio Pelé com as versões e as controvérsias em torno de sua escalada rumo ao Olimpo esportivo. Ele inicia o filme movimentando-se com um andador de rodinhas, e termina o filme em pé, olhando o mar que quebra nas pedras, num alpendre onírico e solitário. Ao contrário de documentários como Pelé Eterno (2004), de Aníbal Massaini Neto, o novo filme sobre Pelé está mais interessado no que ocorreu nos intervalos das grandes conquistas esportivas: as meninas suecas que passavam o dedo na pele do jogador para ver se saía tinta negra, a troca de camisas entre Dorval e Pelé para se divertir à custa dos que viam todos os negros como iguais, os três berros no vestiário após a vitória na Copa de 1970 (“Eu não morri, não! Eu não morri, não! Eu não morri, não!”).

A qualidade das cenas de arquivo, que recuperam (entre inúmeros outros) aqueles momentos em que Pelé era cercado após um gol ou um título por centenas de pessoas, como num enxame de abelhas, reativa a percepção de que não se tratou de um fenômeno ordinário. É possível descobrir como o jogador que fez 1.283 gols em 1.367 partidas arrastou consigo também a própria mudança de conceito do futebol, que se transformou para se adaptar à imprevisibilidade do gênio e foi se tornando progressivamente mais pragmático, duro e desleal conforme Pelé progredia. Subitamente, em uma única Copa do Mundo, a de 1966, havia mais jogadores machucados do que nos oito anos precedentes, devido a entradas violentas dos marcadores.

Do ponto de vista do documento esportivo, a produção também avança ao contrapor a visão nacionalista, brasileira, aos pontos de vista múltiplos dos adversários britânicos de 1966, os húngaros e suecos de 1958, os italianos da final de 1970 e os chilenos de 1962. No espinhoso embate com o treinador João Saldanha, a balança pende para o lado de Pelé, que é retratado como um injustiçado pelo técnico. O zagueiro Brito ressurge para afirmar que Saldanha “falava coisas que não precisava falar” e não entendia de futebol. Um Pelé quase furioso acusa Saldanha de ter inventado que ele tinha um problema nos olhos somente para barrá-lo na escalação e colocá-lo no banco. “Talvez até por maldade dele”, diz o atleta.

Saldanha é mostrado como um dândi quase arrogante, em entrevistas em inglês debochado para repórteres estrangeiros, fumando em quase todas as cenas e, finalmente, em seu ato derradeiro, zombando da opinião do ditador Emílio Garrastazu Médici sobre o futebol. Entra em cena então o verborrágico Zagallo, a três meses da Copa de 1970, para garantir a Pelé: “Você não vai ser barrado nunca”. Entre essa costura de uma seleção que encarnasse um ideal propagandístico de um regime questionado surgem cenas raras, como o ditador Médici de radinho de pilha no estádio somente para ser visto, clareando a raiz do populismo recauchutado de Jair Bolsonaro e Sergio Moro no Maracanã, com a camisa do Flamengo.

Há um leque de entrevistados que vai do surpreendente ao insólito. Delfim Netto aparece confortável, assegurando que, sim, assinou o AI-5; que sabia que fora usado como instrumento para a tortura, “seguramente”; que, sim, Pelé foi praticamente intimado a voltar a jogar por vontade e interesse da ditadura; que, sim, era uma estratégia governamental mantê-lo em foco (“Se o povo está contente, o governo está contente”). Fernando Henrique Cardoso, de quem Pelé foi ministro do Esporte, faz a ponderação de que Pelé “nunca foi uma figura identificada com o Estado”. 

Convencional em sua estrutura, o filme surpreende a partir do último terço de duração, centrando fogo nas questões racial e política. Pelé é cobrado por Paulo Cézar Caju, que diz que ele era um “negro ‘sim, senhor’”, dócil, do tipo que não critica, não se posiciona, e que “uma opinião dele” poderia ter feito muita diferença no debate afirmativo. Benedita da Silva o defende, reconhecendo nele um símbolo de emancipação que fez “o menino negro pobre” querer ser também grande, ser também reconhecido.

Gilberto Gil faz a leitura da importância simbólica do personagem: “Pelé é uma estrela negra que de repente fulgura naquele céu negro da vida brasileira. Era uma potência que apontava para um país mais justo, mais alegre”. Para a aproximação simbólica, muitas vezes os cineastas avançam os sinais, colocando como trilha sonora dos anos 1960, por exemplo, uma canção dos anos 1970, Imunização Racional (Que Beleza), de Tim Maia.

Os diretores evitam a armadilha do “cancelamento”, tão em voga nos dias atuais, dando a Pelé a possibilidade de fazer sua defesa em lances mais controversos de sua trajetória, como a infidelidade conjugal (“aquela paixão, loucura, não teve”, afirma o atleta, sobre o casamento com Rose, que considerou prematuro). Passam rapidamente pelo tema da filha que não quis assumir, Sandra Regina, admitindo apenas que “teve filho fora do casamento”. 

A sociedade atual não parece ter mais paciência para aturar casos análogos ao de Pelé, passando pano para atletas ou artistas de grande impacto popular que se postem de maneira indiferente ao destino de sua nação. O tempo de chamar às falas encurtou conforme a tecnologia avançou. Paradoxalmente, as multidões também se tornaram indiferentes, não se batem mais nas ruas contra o arbítrio, fazem sua militância e conduzem sua indignação a partir de postos anônimos na internet. Pelé, que segue batucando na sua caixa de engraxate de menino, seu Rosebud de defesa, batalhou num tempo de confrontos diretos, quando ainda havia balizas históricas e no qual ainda se aceitava que um herói popular argumentasse com um “se eu dissesse que não sabia, não seria verdade”.

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