Cultura
Descolonizar os corpos
Ao longo deste mês, Panmela Castro, pintora requisitada e ativista social, terá seus trabalhos expostos em oito espaços do Brasil e do exterior


Quando passou no vestibular da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Panmela Castro intuía estar, a partir daquele momento, contorcendo seu destino de menina do subúrbio, criada de modo conservador por um pai analfabeto e uma mãe com pouca instrução.
A entrada na faculdade era, porém, o início tanto de uma trajetória brilhante quanto de um caminho cheio de asperezas. Nos anos de UFRJ, Panmela fazia caricaturas a 1 real no Largo da Carioca, no Rio, para comprar tintas e telas, comer e locomover-se. Formada, ouviu muitos nãos antes de ser aceita no mestrado em Processos Artísticos Contemporâneos pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
Hoje, aos 42 anos, ela mora no Flamengo, de frente para o mar, tem dois ateliês – um no Rio, na comunidade Tavares Bastos, no Catete, e outro em São Paulo, no Ipiranga – e é convidada para exposições e residências mundo afora. Apenas neste mês, terá obras exibidas em oito espaços.
“O que eu sonhava, quando menina, não era ser artista. Era apenas ter autonomia e ser livre”, disse, por Zoom, a CartaCapital, na sexta-feira 1º de setembro, dia da abertura da SPArte Rotas Brasileiras para o público. No evento realizado na Arca, na Vila Leopoldina, Panmela apresentou a obra Arte_ reflexo coletivo, que trata da ideia de democratização da arte.
“Hoje, eu sei que com a conquista da autonomia e deste lugar de privilégio que ocupo vem também a responsabilidade pelo que falo. Sou mulher, negra, periférica e, de um ano para cá, sei que também neurodivergente, porque tive o diagnóstico de autismo”, afirma. “Socialmente, me movi, mas mantenho meu comprometimento com as causas das mulheres e dos direitos sociais.”
A partir da quarta-feira 13, na ArtRio 2023, sua galeria, a Luisa Strina, apresentará uma série de obras inéditas, intitulada Artistas no Ateliê, que reúne retratos de outros nomes da arte contemporânea brasileira.
Ao longo do mês, suas obras estarão ainda, entre outros lugares, na Bienal das Amazônias, em Belém; na mostra Dos Brasis – Arte e Pensamento, no Sesc Belenzinho, em São Paulo; no Instituto Inclusartiz, na Gamboa, onde mostra as criações da Deriva Afetiva: Dakar, feitas durante a residência artística realizada no Senegal, onde esteve em março; e no Stedelijk Museum, em Amsterdã, nos Países Baixos.
“Houve um tempo em que diziam que meu trabalho era sobre a violência. Mas acho que meu trabalho é sobre amor, e sobre afeto”, diz, sobre as pinturas que faz de forma compulsiva. Seu caminho artístico foi, por sua própria origem social, bastante sinuoso.
Panmela diz que, por ter nascido em uma família desestabilizada – seu pai era usuário de drogas e quem a criou foi o padrasto –, teve uma educação muito rígida e, ao entrar na faculdade, quis fazer uso da liberdade que começava a ter. Surfou em trem, frequentou bailes funk e começou a pichar.
“Quero mais é que tenha artista negro em todos os lugares”, diz Panmela, que começou na pixação e no grafite
Depois desse processo, descobriu o grafite e, com ele, um certo lugar do feminino – que desaguaria no feminismo. Se, no picho, as meninas tinham de se masculinizar para ser aceitas, no grafite, descobriria ela, esperava-se que espelhassem um certo mundo cor-de-rosa. Na busca por uma nova libertação, dessa vez das pinturas quase sempre “bonitinhas”, encontrou sua própria voz, ou sua própria palavra-chave: descolonização.
“Acho que meu trabalho tem tudo a ver com descolonização: descolonização do corpo, descolonização da arte e, utopicamente, do País”, disse, em depoimento à Cátedra Olavo Setubal, no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, em 2018. “Minha preocupação é com o que realmente faz sentido como arte periférica, é entender o que nos representa, sem ser só uma reprodução, com elementos estereotipados do que vem de fora. Acredito que essa compreensão passa por um processo de descolonização.”
O ativismo levou Panmela a criar, em 2010, a organização sem fins lucrativos Rede NAMI, cujo objetivo central é “o uso da arte como veículo de transformação social”. Entre os vários projetos abraçados pela rede estão as oficinas de grafite para mulheres negras, a distribuição de cestas básicas, a realização de campanhas para promover e divulgar a Lei Maria da Penha e o Museu Vivo NAMI, um circuito de 1 quilômetro de murais, localizado na comunidade Tavares Bastos.
A Rede Nami lançou, em 2022, o livro Hackeando o Poder: Táticas de Guerrilha para Artistas do Sul Global (Cobogó, 240 págs., 70 reais), um manual com táticas de guerrilha destinado a artistas mulheres que desejam ingressar no sistema da arte. “Hoje, eu, basicamente, dou a estrutura para que outras pessoas assumam esses projetos”, explica.
Durante o processo de constituição desse museu, Panmela, inclusive, meteu-se em algumas confusões. Ela questionava, por exemplo, uma certa visão dos artistas periféricos de que tudo que eles produziam era bom e autêntico e dizia que o grafite nasceu em Nova York e que, não raro, estava longe de representar o que somos. Ela também lembra que, durante algum tempo, foi considerada uma “feminista problemática”.
“O que fui bloqueada em Orkut, Facebook…”, lembra, com um sorriso no canto do lábio. “Mas agora que sou artista contemporânea famosa ninguém mais fala essas coisas. Os grafiteiros me adoram.” Embora tenha clareza de que a arte feita por artistas negros entrou, em alguma medida, no campo de fetiche do mercado, Panmela, simplesmente, não considera haver qualquer possível aspecto negativo nisso.
“Eu quero mais é que tenha artista negro em todos os lugares mesmo, e que as instituições e o mercado continuem buscando esses trabalhos”, diz. “O que vai me incomodar é se voltarmos a ter o privilégio branco na arte.” •
Publicado na edição n° 1276 de CartaCapital, em 13 de setembro de 2023.
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