Cultura

‘Depois da Chuva’ e a inquietude da história recente

Cotidiano de um adolescente de Salvador durante a ditadura é retratado em longa que estreia exatamente 30 anos após a eleição de Tancredo Neves

Longa que relata a vida de um adolescente na Salvador dos anos 1980 é um dos poucos filmes nacionais ambientados no período de redemocratização do País
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É próprio das manifestações artísticas debruçar-se sobre feridas ou buscar elaborar certos trechos da história de alguma pessoa ou nação. De certa forma, pode-se dizer que Depois da Chuva, o primeiro longa de Cláudio Marques e Marília Hughes, presta-se aos dois propósitos.

A história retrata a vida de Caio, um adolescente na Salvador dos anos 1980: envolve-se com o grêmio da escola, descobre o amor, lida com a separação dos pais e participa de uma rádio pirata de cunho anarquista. Enquanto isso ocorre, o Brasil atravessa sua fase de redemocratização. Entre as angústias e descobertas juvenis de Caio, forma-se um microcosmo da agitação que tomava o resto do País.

Foi num 15 de janeiro, em 1985, que Tancredo Neves foi eleito Presidente da República pelo colégio eleitoral. Vinte anos de regime militar haviam transcorrido, e o clamor das ruas por eleições diretas havia sido calado. No entanto, fortes dores abdominais o levariam ao hospital um dia antes da posse, cerimônia da qual ele nunca faria parte. Em seu lugar, assumia José Sarney. É exatamente trinta anos depois, num 15 de janeiro, que o filme chega aos cinemas.

Mais do que tudo, a coincidência das datas reforça a atualidade e a relevância das reflexões contidas no longa. “Durante todo o processo, nos perguntávamos se não estaríamos fazendo algo datado, por mais que para nós não fosse. Não sabíamos se a pessoas iriam entender que, ao falar de 1984, estávamos na verdade falando de um processo que nunca foi finalizado. A gente ainda está demandando e pedindo democracia. O povo nas ruas pelas Diretas Já está ligado com as pessoas nas ruas em 2013”, afirma Marques.

Do jovem protagonista aos protestos nas ruas, é comum um sentimento de inquietude que se agudizara nos protestos de junho de 2013 e na forte polarização das eleições de 2014. “Filmamos em 2012 e não acreditávamos ao ver aquela mesma motivação de que tínhamos falado na mobilização das pessoas no ano seguinte”, conta Hughes. “Antes de ser um exercício de memória, foi um exercício de consciência.”

Graças ao papel, o ator Pedro Maia venceu o Festival de Brasília

Muito do frescor e da verdade do filme vem da maneira sóbria com que a direção encara o tema. O desenvolvimento do personagem principal é prioridade, em detrimento de qualquer tom panfletário que a situação possa inflamar. Cabe destaque aqui à atuação do jovem Pedro Maia, vencedor no Festival de Brasília.

Havia também uma vontade clara de trabalhar, pela via da ficção, um capítulo de nossa história sobre o qual tão pouco se produz. Não raro, as produções não documentais demonstram especial predileção pelo período mais acirrado dos anos de chumbo. “A gente se valer do cinema e da arte para tratar dos nossos traumas, dos momentos que não foram necessariamente bons para a gente como sociedade, é extremamente importante. Temos que fazer 200 filmes sobre a transição, e não um. Temos que ter 200 pontos de vista sobre ela.”

O uso de imagens de arquivo, distribuídas de forma pontual ao longo do filme a fim de contextualizar certas ações no tempo, vai moldando nosso entendimento. Mas, sem elas, Depois da Chuva poderia até ser visto como um bom filme sobre o cotidiano de um adolescente baiano. Poderia, e essa é uma possibilidade que o diretor gosta de deixar em aberto. Mesmo se fosse um longa sobre a juventude, afirma, seria um longa político.

“Em Roterdã, um dos principais festivais do mundo, um russo nos falou de sua adolescência em Moscou, nos anos 1980, e de como tinha tido a mesma percepção da abertura política seguida de impotência. É um momento comum a inúmeros jovens de todo o mundo dessa geração. E tem a ver com a própria juventude, em que se sonha, se quer transformar, acredita que as coisas podem melhorar, e, ao fim, precisa colocar os pés no chão e negociar uma série de coisas. É um processo inevitável de desilusão”, comenta.

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