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Criações farsescas

O encontro entre Damien Hirst e os igualmente infames NFTs contribui para a má fama da arte contemporânea

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Existem dois fenômenos culturais, ambos projetados para nos confundir, que estão valendo muito dinheiro: a arte de Damien Hirst e os igualmente infames tokens não fungíveis, conhecidos pela sigla NFTs – do inglês, non fungible tokens. Ambos já deixaram muitos amantes da arte perplexos e, este mês, se encontraram em um evento dramático encenado durante a Frieze London, encerrada no domingo 16, evento que sempre detém a atenção do mundo da arte internacional.

Como se a combinação do notório – e mais rico – artista britânico com o novo modelo do mistificador mercado de arte digital não fosse suficientemente explosiva, foi armada uma verdadeira fogueira. Na semana passada, Hirst incendiou obras de sua primeira coleção NFT no valor de 10 milhões de libras (cerca de 60 milhões de reais). Para seus críticos, o número alto marcará o ponto mais baixo de uma carreira erigida sobre manchetes e ousadia. Para os admiradores, é uma chance de rever o impacto de um mestre.

A conflagração de Hirst começou na terça-feira 11, diante de um público virtual e de convidados presentes à ­Newport Street Gallery, em Londres. A rotina incendiária continuará diariamente, em horários específicos, até que a exposição, The Currency (A Moeda), seja encerrada, no fim do mês.

As obras em si, uma série de 10 mil imagens com os pontos coloridos – marca registrada do artista – foram lançadas, no ano passado, pelo serviço de artes digitais Heni. Cada uma era representada por um token virtual, ou NFT, no valor de 2 mil libras (cerca de 12 mil reais).

Os colecionadores deviam, dois meses após a aquisição, escolher entre o token ou a arte física. No caso de quem optasse por NFT, a peça seria destruída. Se a escolha fosse pela obra física, o NFT seria apagado do blockchain. Resultado: 5.149 escolheram o objeto tangível e 4.851 o NFT. Essas 4.851 imagens originais estão sendo agora destruídas.

Os colecionadores podiam optar pelo token ou pela arte física. Quem quis o certificado digital, teve a obra destruída

Para Laura Cumming, crítica de arte do Observer, esse ato ostensivamente provocativo está totalmente em consonância com a prática do artista. “Damien Hirst fez do mercado seu meio e sua mensagem há muito tempo”, diz. “Sua última façanha está inserida nesses termos e ele, como sempre, foi brilhante no título: A Moeda. É disso que se trata: a arte como dinheiro e ganhar dinheiro com arte. Isso, por sua vez, vai direto ao coração da semana Frieze.”

Os fogos de artifício de Hirst estão longe de ser o primeiro flerte artístico com o espetáculo da destruição. Antes de Banksy surpreender uma casa de leilões, em 2018, ao rasgar a imagem ­Garota com Balão, a banda britânica KLF deixou atônito o mundo da música ao queimar 1 milhão de libras, em 1994. Em 2001, ­Michael Landy – assim como Hirst, integrante do grupo Jovens Artistas Britânicos – destruiu todos os seus pertences em uma loja de departamentos abandonada.

A demolição injustificada é alarmante, embora qualquer um que já tenha construído um castelo de areia ou um boneco de neve conheça o peso que a ameaça de esquecimento tem sobre a criatividade. Certamente, o vencedor do Prêmio Turner de 2009, Richard Wright, considerou a eventual destruição de seus intrincados murais como parte da essência da obra. Ele afirmou, inclusive, estar muito entusiasmado com isso.

As imagens que compõem A ­Moeda foram feitas à mão sobre papel, em 2016, com tinta esmalte, depois numeradas, com marca d’água, hologramadas e micropontilhadas, além de carimbadas e intituladas aleatoriamente com letras das músicas favoritas de Hirst, antes de serem assinadas no verso.

Olhar do crítico. O tubarão de A Impossibilidade Física da Morte na Mente de Alguém Vivo “é o organismo marinho mais superestimado do mundo” – Imagem: Damien Hirst

O artista vê a série como uma forma de permitir que o público participe, comprando, trocando ou vendendo as obras. Para o mundo exterior, no entanto, é o tipo de golpe que deu má fama à arte contemporânea. Mas onde estaria essa arte sem a má fama? A exemplo do que aconteceu com a onda punk na música, no fim dos anos 1970, os Jovens Artistas Britânicos – conhecidos pela sigla YABs – não teriam conseguido, no fim dos anos 1990, grande resultado sem matar algumas vacas sagradas.

A música dos Sex Pistols não era melodiosa ou suave, mas emocionante. Hirst foi seu equivalente nos YABs. Ele fez as perguntas que a arte moderna sempre fez, mas de forma mais agressiva. O que é arte e em que ela difere de artesanato e design, ou até mesmo uma piada visual?

Embora todos possamos entender que um armário de remédios é um armário de remédios, se você encher uma galeria de arte com eles, o significado passa a ser outro. Mas que valor ou significado têm se você produzir em massa esses armários? Os NFTs levaram esses enigmas conceituais um passo adiante, eliminando a necessidade de qualquer produto.

“Se alguém iria brincar com NFTs e seu valor, esse alguém era Damien Hirst”, diz Louisa Buck, crítica de arte contemporânea do The Art Newspaper, admitindo não ser uma das que acreditam nas NFTs como­ coisas do diabo. “Ele sempre foi brilhante em brincar com o mercado de arte. Agora, grande parte da arte que ele fez ao longo do caminho… Bem, isso é outra história.”

Louisa aponta para a qualidade variável das 223 obras de Hirst vendidas em leilão na controversa “liquidação” de 2008, em Londres: iam do ótimo ao horrível. Foi um fiasco em que os colecionadores foram, supostamente, forçados a comprar secretamente alguns trabalhos para proteger o valor da produção do artista.

“Quando se trata daquele crânio incrustado de diamantes, não se sabe quem o comprou”, lembra Louisa. “Ainda assim, ele fez um trabalho fantástico ao patrulhar o território que pergunta o que é arte e o que é mercadoria. E, aconteça o que acontecer, já produziu algumas das obras mais incríveis das últimas décadas: Mãe e Filho (Separados), a vaca e o bezerro em tanques, o tubarão em formol ou Cem Anos, a instalação das moscas. Também não devemos nos esquecer das pinturas com pontos.”

Nem todos, obviamente, são seduzidos por isso. No último fim de semana, um artista de seu grupo me disse que a confusão em torno de Hirst é quase tão entediante quanto seu trabalho horrível.

O papel de Hirst como motivador e promotor do movimento YABs foi, porém, inegável. Sua ambição estava lá desde o início. Em 1988, ele montou, com outros nomes ilustres, uma exposição em um prédio abandonado, à beira do Tâmisa, chamado Freeze. A exposição vibrava. Era puro nervosismo e exuberância visual. Sensation, a polêmica mostra dos YABs na Royal Academy, em Londres, viria em 1997. A partir daí o que esperava por Hirst era o estilo de vida de um boêmio endinheirado, como um rock star.

“A confusão em torno de Hirst é quase tão entediante quanto seu trabalho horrível”, diz um colega do artista

A cobertura jornalística, pautada, ao longo dos anos, pelo escândalo, variou de revelações dóceis, como a de que ele não fazia todo o trabalho, a especulações sobre a veracidade de sua paródia de tesouro afundado, além de acusações recentes de que ele dispensou muitos funcionários durante a pandemia.

Houve golpes mais sérios, como aqueles vindos de especialistas em arte. Em um filme para o Channel 4, o australiano Robert Hughes, falecido defensor da pintura e da escultura modernas, disse que Hirst funciona “como uma marca comercial”, tem “pouca competência” e que seu tubarão, A Impossibilidade Física da Morte na Mente de Alguém Vivo, é “o organismo marinho mais superestimado do mundo”.

Para Louisa Buck, a crítica à habilidade de Hirst como pintor é mais do que justificada: “Hirst descolou-se da realidade quando começou a se ver como pintor, parado em um estúdio de bata e boina, quando mal sabe desenhar”.

A exposição de NFT provocou, da parte de um crítico, uma reação no mesmo tom. Além disso, um artista quebrou uma das placas de cerâmica pontilhadas de Hirst na calçada da Newport Street Gallery, em protesto, e, na sequência, queimou um livro a ser vendido por 250 mil libras (cerca de 1,5 milhão de reais), como um comentário sobre o “mercado de arte farsesca”.

A arte não é feita só de truques, é claro. Mas cabe a ela estimular imagens e debates, algumas das quais olham diretamente para a própria ideia de arte. O valor dado a uma imagem depende sempre de nós. É um pouco como a fé numa moeda. É um pouco como disse Hirst ao ser questionado se os tesouros de naufrágios apresentado na Bienal de Veneza em 2017 eram reais: “Mito ou fato… o que você preferir acreditar”. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


A ARTE DIGITAL NA RODA FINANCEIRA

Os ativos conhecidos pela sigla NFT, tornados febre no mercado internacional, dão os primeiros sinais de desgaste

Por Ana Paula Sousa

Caindo na real. Os valores de Bored Ape Yacht Club despencaram 50% este ano – Imagem: BAYC

Os NFTs, sigla para a pouco amistosa denominação non fungible tokens, explodiram no mercado global de arte a partir das possibilidades abertas pela tecnologia. O NFT é um ativo criado em uma blockchain, ou seja, de uma plataforma de economia digital, que certifica que uma pessoa comprou determinado item – é o equivalente, no mundo offline, à escritura de imóvel. Uma obra de arte, para ser adquirida assim, deve gerar um token.

Quem compra uma obra em NFT passa a ter os direitos de propriedade sobre ela: pode vendê-la ou reproduzi-la à vontade. Hollywood, por exemplo, disponibilizou tokens do filme Antara, alardeado como a primeira superprodução bancada por NFTs. Quem comprar um token terá parte dos direitos sobre o filme.

Em 2021, a casa de leilões Christie’s vendeu Everydays: The First 5.000 Days, criada pelo artista Mike Winkelmann – identificado nas redes sociais como Beeple – por 69 milhões de dólares. A obra é uma colagem com os primeiros 5 mil desenhos digitais que ele começou a produzir em 2007 e compartilha diariamente nas redes sociais. A coleção foi adquirida por um fundo de criptoativos de Cingapura. O investidor disse, à altura, acreditar que a obra ainda valerá 1 bilhão de dólares.

Uma das mais famosas obras em NFT é Bored Ape Yacht Club, que mostra macacos com diversas caras – mas sempre com expressão de tédio. Um token da coleção chegou a ser cotado, em abril deste ano, com o preço mínimo de 420 mil dólares. Mas, em maio, já havia despencado 50%.

O descrédito financeiro que tem recaído, recentemente, sobre esses ativos parece suceder seu descrédito artístico.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1231 DE CARTACAPITAL, EM 26 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Criações farsescas “

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