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No cultuado ‘O Deserto e Sua Semente’, Jorge Baron Biza procura, por meio da escrita, elaborar sua trágica e violenta história familiar

A mãe de Biza teve o rosto desfigurado pelo marido, pai do autor – Imagem: Ramiro Pereyra
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O escritor argentino Jorge Baron Biza (1942-2001) publicou seu único romance, O Deserto e Sua Semente, em 1998, em uma edição que pagou com o próprio dinheiro. Nesse livro – tornado cult e agora lançado no Brasil –, ele tenta elaborar de forma artística um trauma familiar autobiográfico: no dia 16 de agosto de 1964, durante uma audiência de divórcio, seu pai, Raúl Barón Biza, jogou no rosto de sua mãe, Rosa Clotilde Sabattini, um copo de ácido sulfúrico, provocando danos irreparáveis.

Ainda em 1964, seu pai se suicidou. Em 1978, foi a vez de sua mãe. Em 2001, Jorge completou a sina familiar, tirando também a própria vida. Como é possível seguir em frente diante de tamanha violência? O livro que chega ao Brasil na excelente tradução de Sérgio Molina apresenta algumas respostas – todas incompletas e lacunares – para essa questão.

Quem narra a história é Mario, filho de Eligia e Arón, que atua como uma espécie de secretário da mãe no período de tentativa de reconstituição cirúrgica de seu rosto, pescoço e mãos, que ocorre na Itália. Entre uma consulta médica e outra, Mario escapa dos quartos e dos hospitais em direção à rua, acumulando experiências aleatórias e descontínuas – bebe como se não houvesse amanhã, cruza o caminho de indivíduos os mais diversos, para os quais mente acerca de suas origens e dos motivos que o levam até o lugar onde está.

O registro romanesco de Baron Biza é, com frequência, técnico e direto. “Nosso médico tinha várias maneiras de observar as feridas: ora as raspava, ora aplicava uma lente sobre suas partes mais congestionadas, mas, por fim, sempre acabava confiando no tato”, descreve. A tônica dessas passagens é um misto de confiança e resignação, já que é preciso seguir as recomendações médicas mesmo sem garantia de sucesso – a lentidão dos tratamentos é exasperante.

O Deserto e Sua Semente. Jorge Baron Biza. Tradução: Sérgio Molina. Companhia das Letras (253 págs., 74,90 reais) – Compre na Amazon

Os momentos de distanciamento clínico, contudo, são contrabalançados pelos excessos vividos por Mario do lado de fora: “Alta madrugada, Dina e seu amigo me carregaram até o carro. Tombei no banco de trás e toda Milão virou um carrossel. Pedi que parassem. Dei uns passos e me sentei na calçada”. Essa passagem contém alguns verbos fundamentais para a tarefa de descrever a deriva do protagonista: ser carregado, pedir para parar, sentar, tombar. Esse caos noturno é, paradoxalmente, o que permite a manutenção de um mínimo de ordem na vida diurna.

O narrador é o primeiro a reconhecer a necessidade da oscilação entre ordem e desordem. “As mudanças bruscas e inesperadas de espaço durante a noite se tornaram os únicos marcadores temporais que assinalavam a passagem do tempo naquela cidade fosca”, diz. Existem, no entanto, momentos do romance nos quais essa divisão entra em curto-circuito – quando Mario precisa se manter sóbrio para conseguir depilar, com uma pinça, a pele nova enxertada como pálpebra para sua mãe, por exemplo.

A necessidade do protagonista de se afastar da mãe é o dispositivo que garante a manutenção do assombro no leitor. A força estética do romance não está apenas na descrição do rosto desfigurado – e nas frustrantes tentativas de reconstrução –, mas na construção cuidadosa dos efeitos secundários dessa situação sobre o filho.

É por isso que O Deserto e Sua Semente não se resolve exclusivamente na chave da confissão e da autobiografia, por mais que esses sejam elementos centrais da narrativa. Existe uma sutileza nessa dimensão oblíqua que Baron Biza dá ao relato, algo que garante a permanência histórica de sua obra e o afasta dos atalhos da recompensa rápida, da fragilidade narcísica e da homogeneização dos afetos, tão comuns em nossa época. •


VITRINE

Por Ana Paula Sousa

Como isso foi possível? Tal questão norteia Baviera Tropical (Todavia, 384 ­págs., 89,90 reais – Compre na Amazon), investigação de Betina Anton resumida no subtítulo: A história de Josef Mengele, o médico nazista mais procurado do mundo, que viveu quase vinte anos no Brasil sem nunca ser pego.

Bernardo Esteves foi colher nos saberes indígenas, na genética e na arqueologia as bases de Admirável Novo Mundo (Cia. das Letras, 504 págs., 104,90 reais – Compre na Amazon), em que busca contar outra história dos povos americanos – descolonizada e narrada sob um ponto de vista sul-americano.

Banana Yoshimoto escreveu Doce Amanhã (Estação Liberdade, 128 ­págs., 59 reais – Compre na Amazon) logo após o terremoto e o ­tsunami de Fukushima, no Japão, em 2011. A trama, não à toa, gira em torno da busca de reconstrução de uma mulher que foi vítima de um grave acidente de carro.

Publicado na edição n° 1288 de CartaCapital, em 06 de dezembro de 2023.

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