Cultura

Cildo Meireles revisita seu trajeto de confrontos com o autoritarismo

Artista está em cartaz em uma retrospectiva no Sesc Pompeia, em São Paulo, até fevereiro de 2020

Meireles no interior da obra que dá nome à exposição. Foto: Carol Mendonça
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Com um intervalo de meio século, o veterano artista vê-se diante do mesmo dilema histórico: como lidar mais uma vez com o avanço do autoritarismo, da censura e do arbítrio apenas com o poder da linguagem? Em 1969, o carioca Cildo Meireles tinha 18, 19 anos, e se batia pela escolha de uma expressão pessoal, tateando entre o abstracionismo e o figurativismo. Mas, naquele ano, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, artistas de renome na época, escolhidos para constituir a representação brasileira na Bienal de Paris, sofreram um ataque brutal da ditadura civil-militar. Três horas antes de abrir a mostra coletiva, o museu foi cercado por agentes do Dops e o famigerado coronel Montagna (César Montagna de Souza), cabeça da operação, deu três horas para desmontarem a exposição, que iria abrir às 18 horas. “Após presenciar aquilo, eu me senti na obrigação de abordar a questão em uma obra”, conta Cildo.

A oportunidade não tardou. Um ano depois, em abril de 1970, Cildo foi convidado a integrar, em Belo Horizonte, o evento Do Corpo à Terra, organizado por Frederico Morais, com outros 25 artistas (entre eles Hélio Oiticica, Arthur Barrio, Luiz Alphonsus e Thereza Simões), ocupando espaços da cidade como o Parque Municipal, o Ribeirão Arrudas e a Serra do Curral, além de intervenções na rua, em frente ao Palácio das Artes. A escolha de Cildo foi de uma violência inaudita. Ele criou a obra Tiradentes – Totem – Monumento ao Preso Político, que consistia no seguinte: havia uma estaca sobre um quadrilátero marcado por um pano branco, com um termômetro clínico no topo e galinhas vivas amarradas à estaca. O artista ateava fogo às galinhas. Vivas.

 

“Naquele momento, estavam esquartejando o Stuart Angel na pista do Aeroporto do Galeão. Estavam fazendo isso com vários brasileiros jovens, achei que tinha que fazer algo a respeito”, explica Cildo, hoje consagrado mundialmente, um dos nomes mais valorizados da arte brasileira no mercado internacional (em 2015, uma de suas peças chegou a ser vendida por 641 mil dólares num leilão da Christie’s, cerca de 2,5 milhões de reais).

A mostra coletiva de 1970 foi um ato deliberado de confrontação. O luso-brasileiro Arthur Barrio dispôs 14 trouxas ensanguentadas (mistura de sangue, ossos, tinta vermelha e carne) por terrenos e até num rio. Hélio Oiticica fez uma trilha de açúcar na Serra do Curral. O evento chamo  atenção de militares da repressão, que faziam uma convenção em Minas, e os artistas ganharam seus nomes em inquéritos e viraram alvo de perseguição dali em diante. “Curioso é que, no jantar dos militares, após os discursos, eles serviram galinha ao molho pardo”, ironiza Cildo.

Entrevendo: Cildo Meireles (Foto: Carol Mendonça)

Quase meio século depois daqueles acontecimentos, hoje com 71 anos, Cildo Meireles apresenta no Sesc Pompeia, na Barra Funda, em São Paulo, a mostra Entrevendo, a primeira retrospectiva de sua carreira em duas décadas, com 150 obras. Aquele arroubo de juventude, a indignação contra um regime indigno, praticamente definiu os rumos de sua carreira, impelindo-o a intensificar sua produção como artista conceitual. Mas as galinhas queimadas não fazem mais parte de sua revisão. “Não vou montar mais. Até hoje essas galinhas cacarejam na minha memória”, conta o artista. A virulência de sua investida contra a ditadura, que tinha a intenção de despertar o espectador brasileiro para a violência do regime, também ecoou longe: em 2008, quando foi anunciado que haveria uma mostra de Cildo na Tate Modern, em Londres, ativistas da ONG Peta (People for the Ethical Treatment of Animals) ameaçaram um protesto contra o artista.

Não que Cildo tenha abandonado por um segundo sequer suas convicções políticas. Em 1991, ele foi comissionado para fazer uma obra que tratasse da chegada dos europeus à América. Imaginou a peça Amerikkka, na qual o espectador se deita num chão de ovos tendo como teto reluzentes balas de fuzil (as referências são óbvias: KKK é a sigla da Ku Klux Klan, grupo racista americano, e os projéteis remetem ao ultra-armamentismo americano). Cildo só conseguiu montá-la efetivamente em 2013 para uma exposição no Palacio del Arte, em Madri, na Espanha. Nos anos 1990, ele conta, foi difícil realizar no Brasil porque as balas, que são reais, dependiam da autorização do Exército e a fabricação dos ovos de madeira que ficam no chão da instalação também era difícil para a carpintaria realizar em tempo hábil. A obra parece tristemente atual no Brasil de Bolsonaro, em 2019.

Mostra coletiva de 1969  enfureceu os militares e marcou a primeira ruptura

“Não foi intencional. Eu imaginei essa obra, originalmente, para a galeria Juana Mondó, em Madri, entre 1990 e 1991”, conta Cildo. “Se se tornaram premonitórias (as obras), é porque encontram relação com essa palhaçada sinistra que vivemos no Brasil e nos Estados Unidos atualmente. Também guardam relação com a questão indígena. Mas foi mera coincidência”, ele diz. Em seguida, para ilustrar a sua ideia do que representam os governos de extrema-direita no mundo, como os de Bolsonaro e Trump, ele conta a seguinte história:

“Meu irmão, que era jornalista, quando tinha uma folga, gostava de pegar o carro e sair da cidade, dirigindo em direção a algum lugar que não sabia qual era. Uma vez, dirigiu para longe e chegou a uma cidadezinha que tinha um circo. Ele entrou no circo e era a vez do palhaço. O palhaço contou uma piada e ninguém riu. Contou outra e ninguém riu. Até que um sujeito na plateia falou: ‘Mas que palhaço sem graça’. O palhaço ficou enraivecido e disse: ‘Se você é homem, venha até aqui!’. O homem respondeu: ‘Aí, não, aí é lugar de palhaço’. O palhaço então passou a tentar agredi-lo. O que vivemos no mundo neste momento é isso, esse momento de palhaços sem graça. Mas a gente vai superar isso. Ou supera, ou não vai ter mais mundo”.

Ossos e moedas são utilizados em obras que articulam uma crítica tanto ao capitalismo e às máquinas de moer gente quanto à tragédia indígena (Foto: Carol Mendonça)

A mostra de Cildo inclui desde desenhos figurativos até documentos, projetos, objetos. Entrevendo, a instalação que dá nome à exposição, tem provocado filas no Sesc Pompeia. É um túnel sem saída feito de madeira, no qual o visitante entra e caminha em direção a uma fonte de vento cálido, com pedaços de gelo de água doce e salgada na boca.

Os “lagos” de moedas de Cildo no Sesc causam certo maravilhamento nos espectadores, especialmente nas crianças. “Essa peça depende muito da luz”, ele explica. “Conforme o lugar  em que você faz, ele assume uma cor diferente. Com moedas niqueladas, a luz é prateada. Durante a exposição Magiciens de la Terre (mostra da qual Cildo participou, no Centro Georges Pompidou, em Paris), era dourada porque, nos Estados Unidos e em Londres, usei moedas de cobre avermelhado.”

Para o artista, os regimes de Trump e Bolsonaro são um tipo de palhaçada sinistra

Nas fontes de moedas, o artista faz alusão ao trabalho da artista Mary Vieira (precursora do cinetismo no Brasil). “Ela tinha uma obra que consistia em colunas sustentadas por uma haste, com volumes fatiados. Mas também remete à piscina do Tio Patinhas (personagem da Disney), aquela na qual ele mergulha dentro da sua caixa-forte. Tem essa instância também. Quando não existe, o público a cria.”

A retrospectiva da obra de uma vida acaba revelando também os vaivéns da sociedade em toda sua extensão, da política à economia. Por exemplo, na primeira vez que fez a instalação Missão: Missões – Como Construir Catedrais (1987), Cildo Meireles usou 600 mil moedas de 1 centavo. “Para conseguir essas moedas, era suficiente trocar uma nota de 5 dólares”, ele conta. Hoje, são 970 mil moedas. Alguns espectadores comentam sobre o cheiro forte dos ossos bovinos que emana da instalação. “Isso é porque ainda são ossos relativamente novos. São 6 toneladas de ossos que usei para selecionar os que entraram na obra. E assim mesmo ainda ficou o cheiro”, ele revela. “Mas… vou te contar, quando não tem o cheiro, eu peço para botar algum pedaço de carne podre por baixo para que tenha”, revela, mostrando que o artista provocador de 21 anos vive ainda por baixo do veterano de 71.  A indiferença é tudo que ele não quer provocar.

Entrevendo – Mostra retrospectiva de Cildo Meireles

Sesc Pompeia (Rua Clélia, 93, tel. 11 3871-7759). Até 2 de fevereiro de 2020. De terça a sábado, das 10 às 21h30; domingos e feriados, das 10 às 19h30. Entrada gratuita.

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