Cultura

Agosto

Os meninos gritam os nomes de seus ídolos quando brincam de futebol. No ano do Centenário, o jovem palmeirense não grita por ninguém. Por Matheus Pichonelli

O ídolo dele foi embora faz tempo. Na brincadeira com os outros meninos, até a fantasia lhe foi arrancada
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Os meninos brincavam à beira da piscina com uma bola imaginária de futebol. O santista espetava os cabelos e, antes de se jogar na água, dava não um, mas 9.372 dribles imaginários em 9.372 adversários imaginários e saía comemorando em um alambrado imaginário com um soco no ar à la Neymar. O corintiano pulava para agarrar a mesma bola imaginária e gritava: “Cááááááááááássio!”. O são-paulino corria pela borda da piscina e aplicava um voleio preciso, tal qual o ídolo, Luis Fabiano. O palmeirense respirava fundo. Olhava sério para o gol imaginário e fuzilava com uma cavadinha. Acompanhava com o queixo o trajeto imaginário da bola até morrer no fundo das redes. Sem alarde, tapava o olho com a concha da mão esquerda e cerrava os punhos da direita. Pulava na água com o braço erguido.

As brincadeiras continuaram ao redor da piscina depois da temporada 2012. O corintiano segue gritando o nome do seu goleiro. O santista perdeu Neymar, mas ganhou Robinho, além de outros ídolos promissores, como o jovem Gabigol, nome gritado com frequência pela vizinhança. O são-paulino intercala a imitação de Luis Fabiano com as de Ganso, Pato e, agora, Kaká. O palmeirense viu o ídolo Barcos migrar para o Grêmio de Porto Alegre e hoje não imita ninguém.

A ausência de jogadores de referência – para quem a criança olha e diz aos amigos “quando crescer vou ser assim” – talvez seja a maior lástima do torcedor palmeirense no ano de seu centenário. O cenário é de terra arrasada. Quem tenta transmitir aos filhos o legado familiar e afetivo não tem hoje qualquer motivo para leva-los ao estádio. Nem argumentos plausíveis para convencê-los a ficar do seu lado na sala de tevê para acompanhar uma partida que, nos últimos tempos, se transmutou na exibição do desespero. (Em casa, a doutrinação vai me custar mais saliva e vídeos antigos no YouTube do que eu imaginava).

Quem gosta e acompanha uma equipe vai sempre gostar e acompanhar, esteja ela na Série A, B ou C do Campeonato Brasileiro. Mas, para quem começa a entender agora o esporte como parte da construção da identidade, é difícil criar qualquer empatia com o lateral que tem medo de chutar a gol, com o meia que não acerta o passe, com o atacante que entra em campo com sono, com o volante que carrega e não solta a bola, com o zagueiro que tenta resolver o jogo sozinho e abandona a defesa, ou com os espasmos de um talento que não fica mais de 20 minutos em campo.

Da janela de casa, olho para meu vizinho e me pergunto: para quem, do elenco atual, ele vai olhar, se inspirar, escolher como heroi e narrar os feitos aos filhos? Quando o vejo, teimoso, a chutar sua bola imaginária, me recordo de quando vi meu time de perto pela primeira vez. Tinha 13 anos, morava em Araraquara e esperava ansioso pela partida contra a Ferroviária. Da arquibancada, vi enfileirados todos os ídolos que um garoto pode ter e colecionar em seu álbum de figurinhas: Velloso, Djalminha, Rivaldo, Muller, Luizão e Cleber, com seu insubstituível topete-tijolo. Lembro de ter fixado o olhar sobre o nosso quarto-zagueiro quando ele veio para perto do alambrado. Naquele dia, concluí, admirado: “não era mentira, eles existem”.

Daqui a alguns dias o Palmeiras completará cem anos de existência. Estive presente e acompanhei de perto, mesmo de longe, 20 anos dessa história. Vivi, neste período, dois momentos distintos. O primeiro foi glorioso, embora duro. Não me refiro às conquistas (foram muitas), mas à incorporação de uma carta de princípios, para usar a expressão de meu amigo Leandro Beguoci, gravada no próprio hino do clube. Conheci assim não o alviverde vitorioso ou invencível, mas o alviverde Imponente, ciente da dureza do prélio que o aguardava e que aguardava, sobretudo, os adversários. Não era impossível vencer aquele time, mas era preciso suar para conseguir batê-lo. Era preciso correr. Era preciso se superar. Um visitante que saísse do Parque Antártica com um empate na bagagem tinha motivos para comemorar durante a semana inteira. Este primeiro período durou entre 1993 e 2004. Sim, abarca o primeiro rebaixamento e a derrota para o ASA de Arapiraca e outras quedas que, quando materializadas, causavam surpresa, jamais resignação.

Quando voltou para a Série A, com um time liderado pelo jovem Vagner Love, a ordem parecia restabelecida: recuperado da queda, o Palmeira seria sempre um páreo duro para qualquer adversário, vencesse ou não a partida. Mas no ano seguinte o time já era outro. E no seguinte, outro. E no seguinte, outro. Porque a fase era outra. Love, Juninho Paulista, Pierre, Edmundo (da segunda passagem), Valdívia (da primeira), Keirrison, Diego Souza, Cleiton Xavier, Kleber, Marcos Assunção, Hernán Barcos, Alan Kardec. Parecia uma praga: bastava, para o torcedor, reconhecer um ídolo em campo para chamar de seu e aquele jogador que parecia resgatar a imponência de outros tempos simplesmente desaparecia, quase sempre pela porta dos fundos. A grande e honrosa exceção nos dois períodos foi o goleiro Marcos, hoje aposentado.

De 2004 para cá o Palmeiras se tornou uma terra infértil para grandes jogadores. Por algum motivo, eles não querem vestir a camisa do Palmeiras. Os que vieram e vingaram serviram apenas a paixões efêmeras. A carência é tanta que basta alguém acertar um cruzamento para nos lançarmos aos seus pés com pedidos de casamento: “por favor, fique”. Porque, de dez anos para cá, o Palmeiras virou um terreno erodido. Esta é a diferença do primeiro para o segundo rebaixamento: um surpreendeu; o outro, não. O acúmulo de fracassos (a queda vertiginosa em 2009, o segundo rebaixamento, a goleada para o Coritiba e as derrotas para times menores como Atlético Goianiense, Ipatinga, Chapecoense, Icasa, Mirassol, Ituano) fez do Palmeiras o time a ser batido entre os grandes. Botafogo, Flamengo, Corinthians, Atlético-MG, São Paulo, Sport: nenhum deles imaginou ter enfrentado no Brasileiro deste ano um adversário imponente. Por isso fizeram o que fizeram em campo. Venceram sem suar.

Dias atrás, vi meus amigos palmeirenses comemorarem a derrota em casa para o Cruzeiro por “apenas” 2 a 1. Eis o maior estrago de uma crise: a resignação, o único sentimento que solapa na base nossa capacidade de sonhar ou nutrir qualquer ambição (seja um título da Libertadores ou uma mísera vitória em casa).

Em um ano e meio de gestão, o presidente atual do Palmeiras, Paulo Nobre, contratou 37 jogadores. Só dois deles são titulares; muitos, como Bernardo, Bruno César e Eguren, não são sequer relacionados para o banco de reservas. É como se o clube tivesse se transformado em um grande spa de luxo: o atleta chega fora de forma, passa meses sob regime, treinando em separado, e vai embora descansado sem dizer oi nem tchau.

Pois este grande spa do futebol chamado Palmeiras se permitiu, meses atrás, esnobar seu melhor atacante nas duas últimas temporadas em troca de migalhas. Foi de Alan Kardec o último gol da última vitória do Palmeiras em clássicos, sobre o São Paulo, pelo Paulistão deste ano. E foi dele o último gol do São Paulo na última derrota do Palmeiras em clássicos neste Brasileiro (foram três sacoladas contra os arquirrivais em apenas um mês). Isso diz mais sobre o atual momento do clube do que qualquer balancete ou discurso sobre produtividade.

A poucos dias de seu centenário, celebrado em 26 de agosto, o Palmeiras agoniza na lanterna do Campeonato Brasileiro. Não vence uma partida na Série A há dez jogos. Não é sombra do que era até outro um dia. No dia de seu aniversário, provavelmente receberá cumprimentos e a visita de eternos ídolos para falar sobre esperanças e as glórias do passado. Nenhuma delas foi testemunhada por meu jovem vizinho palmeirense. O ídolo dele foi embora faz tempo. Na brincadeira com os outros meninos, até a fantasia lhe foi arrancada.

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