Cultura

Carta a uma jovem dos anos 80

Uma mensagem do futuro a Estela, personagem de Clara Gallo no filme “Califórnia”, de Marina Person

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Querida Estela*,

Sou quase dez anos mais novo que você, mas já tenho a idade do seu tio. Sinto muito o que aconteceu com ele. Fiquei tocado com a troca de correspondência entre vocês, e me lembrei de quando escrevia cartas para pedir notícias e contar como estava. Peguei uma parte dos anos 1980 e não sei dizer exatamente se senti inveja ou saudade dos gravadores, das fitas K7, dos clipes, do cano alto, das camisetas largas, do Fusca e da Bic de três cores.

Assim como você, não havia internet em casa quando tinha 15 anos. Era ano de Copa do Mundo e um presidente eleito pelo voto popular estava prestes a completar o mandato pela primeira vez. Tudo bem que ele entregou a faixa para ele mesmo, mas isso é outra história. Só queria lembrar que a empolgação do seu tio com as Diretas ainda vai levar um tempo para se confirmar.

Soube de tudo pela Marina Person, que resolveu contar num filme a sua história e a de todos nós. No começo fiquei ressabiado: é difícil escapar de uma velha fórmula quando falamos sobre adolescentes. Por isso tive uma sensação de déjà vù quando vi seu amigo estranho entrar pela porta da frente da sala no meio (ou no fim) do ano letivo.

Quando ele chegou, sabia o que viria por aí, mais ou menos como aconteceu no Hoje Eu Quero Voltar Sozinho: ele fatalmente iria alterar os planos, desejos e a rotina da protagonista. Logo todos saberiam que ele, afinal, não era tão estranho como parecia. Ou melhor: que vocês não eram, assim, tão diferentes. Dito e feito.

Mas tinha algo no seu jeito de não sorrir que fez toda a diferença durante o filme. Todas as minhas grandes amigas tinham esse sorriso contido na sua idade. Com uma delas me casei.

Em uma idade tão propícia para ser igual a todos, é difícil escapar de certas convenções. Pois achei o máximo quando você trocou sua festa de 15 anos por uma viagem à Califórnia. Na minha turma, lááááááááááá no interior de São Paulo, pouca gente faria igual. A não ser que a viagem fosse para Orlando.

Eu gostava pouco de festas, na verdade. Sempre tive uma certa preguiça dos chamados “grandes momentos”. Desconfiava que eram um engodo para suportar nossas rotinas enfadonhas, preenchidas com linhas retas, sem grandes suspiros ou emoções na lida diária. E na maioria das vezes eram.

Batizado, festa de debutantes, formaturas, casamento, festa da firma: por mais pompa que tenham, nada disso é capaz de provocar tanto frio na barriga do que correr em direção ao desconhecido. E ele não tem hora para se apresentar.

Às vezes chega com o cabelo despenteado e uma fita inteirinha gravada com as músicas que gostamos. Se fosse um gênio e tivesse a sua idade, levaria a sério a ideia de criar um botão de “compartilhar” para centralizar esse ímpeto de todo adolescente.

Não é o mesmo que fuçar as novidades na loja de discos, mas é preciso antever: nada dura para sempre, mas o espírito é quase o mesmo. O recado no gravador de ontem é a mensagem de voz de hoje.

Por falar em desconhecidos, acho que nunca vamos perder o medo dele. Crescer não é simplesmente enfrenta-lo; é sair da zona de conforto e caminhar entre contingências. As nossas foram parecidas: na minha geração, o medo da Aids antecedeu qualquer desejo afetivo. As perdas são educativas nesse sentido, mas não bastam.

No filme, à medida que você esquecia dos planos originais, você se tornava outra pessoa. É como deixar as rodas da bicicleta em algum canto da infância: crescemos quando trocamos a segurança pela liberdade. Nada pode ser mais assustador.

Vai ser assim a vida toda, mas é bom lembrar de quando tudo começou. Quando tinha a sua idade, fixava metas como quem constrói entrepostos em uma estrada. “Quando tiver 18 anos, vou pegar o carro e viajar o mundo. Vou ser jogador. Vou ter minha própria banda. Vou ser desenhista. Ou escritor. Antes da faculdade, terei minha própria editora. Vou construir um puxadinho na chácara da família e receber os amigos aos finais de semana. Vou abrigar todos os cães da cidade. Vou construir uma piscina imensa e inaugurar um parque aquático. Vou sentar com meu tio na varanda e ouvir música todo dia até amanhecer”.

No fim, tudo deu errado, mas acabou tudo bem. Quando chegava à idade planejada, toda ideia estava pulverizada. E quem não se perdeu se encaretou. Quando criança, os adultos que eu queria por perto estavam atolados em compromissos. Quando eles envelheceram, quem se atolou fui eu.

Lembrando das Califórnias que eu também criei na cabeça, em parte para ter o que pensar a caminho de alguma aula sonolenta, imagino que não foi por desleixo que não as alcancei: foi porque, antes da chegada, os desejos já tinham mudado de endereço.

Quando em Araraquara, sonhava com São Paulo; quando em São Paulo, sonhava com Brasília. Quando a porta de Brasília se abriu, só pensava no interior. Não importa para onde vamos: estamos sempre onde não podemos estar.

Sobre isso um amigo conta uma bela história: em certo Natal, queria ganhar um videogame. Os pais não tinham TV em casa e não tinham dinheiro para comprar os dois aparelhos. Deram a opção de escolher entre um e outro. Ele escolheu a TV, claro, e esperou o Natal seguinte para ganhar o videogame. Mas uma coisa aconteceu entre uma festa e outra: ele cresceu. E a vontade de antes já não existia no ano seguinte. Fora canalizada para outros planos.

Talvez você não saiba, mas você viveu a Califórnia toda vez que escrevia para o tio meio doido que voltou para casa mudado. Ou quando fechava os olhos para ouvir tanta música dentro do quarto. Depois de adulto a gente descobre que todos os lugares do mundo cabem em um quarto de adolescente.

No fundo você sabia disso tudo, mas faltava descobrir. Uma pena que, até o fim do colégio, os amigos já não serão os mesmos. Se quer uma dica: quando rolar reencontro de turmas, fuja dos grupos de WhatsApp. 

Caso contrário, você descobrirá, num tom de melancolia, que o que deveria mudar não muda nunca e o que não deveria mudar mudou faz tempo. E se lembrará todos os dias por que se distanciou tanto de tudo. (Spoiler: depois de certa idade meio mundo se transforma em uma máquina de repetir perguntas – “cadê o namorado(a)”, “quando casa?”, “não pensa em ter filhos?”, “quando vem o segundo?”, “pra onde você vai no fim do ano?”, “quanto você pagou?”, “quantos quilômetros por litro?”).

Crescer é fazer novos amigos e se desfazer de outros. É deixar alguém seguir. E é viajar para qualquer lugar sem colocar o pé na estrada. Para todo o resto existe a música. É pelo som que reintegramos qualquer distância ou presença. Todos os nossos sonhos cabem em uma fita K7. Todas as fitas K7 cabem agora no nosso bolso.

Não que antes fosse melhor. Mas é bom lembrar de quando não sabíamos do que ainda viria. Nisso, não somos tão diferentes de nossos pais (pode não parecer, mas o seu, na sua idade, quebrava tudo com os amigos da banda; pergunte pra ele).

Na minha cabeça, tenho uma música para cada amigo de cada época. A partir de hoje vou lembrar sempre de você quando ouvir The Cure.

Um grande abraço do seu novo amigo,

Matheus

 

*Carta endereçada a Estela, personagem de Clara Gallo no filme Califórnia, de Marina Person.

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