Cultura

Caprichos biográficos

Domingos Pellegrini escreve sobre o poeta Paulo Leminski em última edição antes de cair por terra a autorização prévia. Por Rosane Pavam

O poeta Paulo Leminski, o "raro deles", perfilado em diálogo poético
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Foram dois sonhos. No primeiro, o poeta Paulo Leminski, o Polaco, andava meio de lado, o fígado inchado pela cirrose, quando Domingos Pellegrini, o escritor que sonhava, lançava-lhe a questão: “Você vai se matar até morrer, né?” Ao que Polaco retrucava: “Mas conto com você, cara, para reviver”.  No segundo sonho, o escritor, apelidado de Pé Vermelho pelo poeta, via-o cozinhar sopa num caldeirão em sua casa no bairro do Pilarzinho. Sustentado por três pedras sobre um fogareiro a álcool, o panelão de Leminski fervia com legumes, cogumelos, costelinha de porco, pinhão e páprica. “Para sopa pop, tempero fino!”, soltou Polaco a Pé Vermelho, que acordou suado.

Os dois sonhos encarregavam o escritor de alguma coisa, mas do quê? Professor de Literatura na Londrina natal durante a década 1970 e vencedor de quatro Prêmios Jabuti, Pé Vermelho (porque assim foram apelidados os londrinenses com o pé sujo de terra, e talvez também porque se entende vermelho quem como ele combateu a ditadura) procedeu às interpretações. Leminski queria que Pellegrini o ressuscitasse, e lhe ensinava como fazer. A sopa onírica representava sua história, deveria ser sofisticada. Os legumes significavam o trivial, os fatos de sua vida. O álcool vinha para cozinhá-la. A costelinha com cogumelos, mescla eslava e negra, ligava-se às suas origens de família. Pinhões significavam o Paraná onde nasceu. E a páprica aparecia como um pó um tanto polonês a tornar mágica a poção. Faltava explicar as pedras, mas elas vinham subentendidas, a obra de Polaco era salpicada delas.

“Eu tinha de obedecer a Leminski, ele me veio em dois sonhos!”, argumenta Pellegrini por telefone a CartaCapital. Morto em 1989, aos 44 anos, o poeta, assim acreditava Pé Vermelho, convocava-o a aceitar a proposta feita dias antes por Samuel Ramos Lago. A mando da viúva de Leminski, Alice Ruiz, o editor da Nossa Cultura lhe pedia para recontar a história do poeta. Nada lhe restava senão topar, mas desconfiou. Doze anos antes, em 2001, aparecera uma completa biografia de Leminski, mas Alice boicotara sua reedição. O Bandido Que Sabia Latim, de Toninho Vaz, ainda que feita com auxílio das informações de Alice, e a ela dedicada, jamais conheceu uma reedição pela Record.

Isso porque faltou à editora lutar contra a náusea de Alice e das filhas do casal, Áurea e Estrela, diante daquele texto linearmente bem construído que mostrava Leminski alcoólatra, mal asseado, dentes estragados, nu em senso metafórico, a suportar o suicídio de um irmão e a morte do pai como decorrência do hábito de beber. Naquele ponto, a família de Leminski amparava-se em uma limitação legal, derrubada dia 6 último pela Câmara e supostamente nascida para conter a difamação de biografados.

Era esse dispositivo, mais exatamente o artigo 20 do Código Civil, de 2002, que o Projeto de Lei 393 desejava derrubar. O texto do deputado Newton Lima tramitara por quase três anos até ser contestado no ano passado pelo Procure Saber (na versão de Pellegrini, “Procure Esconder”). A opinião pública rejeitaria tal grupo criado por Roberto Carlos, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros tantos. Ninguém entendeu ser procedente, no país em que a liberdade de expressão é constitucional, a consulta obrigatória a biografados antes de escrever sua história. Ainda assim, para ser aprovado na Câmara e enviado ao Senado, o projeto de lei que elimina a autorização prévia recebeu quatro emendas, duas do deputado Ronaldo Caiado, de modo a assegurar ao atingido em sua “honra, boa fama ou respeitabilidade” a opção de pleitear a retirada de trecho ofensivo em edição futura.

Estamos naquele ponto em que Alice Ruiz entrega a Pé Vermelho, um cumpridor de prazos cinco anos mais novo que Leminski, as 150 laudas transcritas de seu depoimento a Toninho Vaz. Ela lhe fornece o material porque, a seu ver, o biógrafo antecessor subaproveitou suas palavras. Mais que isso, Vaz teria traído aquele que um dia disse ser Alice “meu eu mulher”. Enganara-o quando o relatara imundo em álcool, num caminho que o próprio Pellegrini entendia filosoficamente suicida, e talvez também assim o tivesse compreendido Alice, que teria se separado de Leminski em uma noite de Natal.

“Obediente” ao poeta, Pellegrini encontrou o formato de Minhas Lembranças de Leminski (Geração Editorial, 200 págs., R$ 34,90). Não aceitou redigir a versão “oficial” da história, até porque já existia uma reveladora sobre ele, interditada por ela. Escreveria com o pó mágico poético, mas sem perder o pé do real, como lhe ensinara a literatura de Leminski, “o raro do reles”, cuja antologia Toda Poesia, editada no ano passado pela Companhia das Letras, teve 100 mil exemplares distribuídos.

“Nós éramos dois ególatras”, crava Pellegrini, rindo. Suas frases são curtas, tem o humor na ponta da língua e é elétrico em alguma medida, decerto não a mesma de Leminski. Descrito em seu livro como ágil e corporal, o poeta subia no guarda-roupa para ler em paz quando menino. Adulto, devotado a ser monge sabedor de muitas línguas, desistiu do monastério quando se viu pensando em mulheres ao passear no telhado do Mosteiro de São Bento, em São Paulo. “Se não fôssemos ególatras, não beberíamos por oito horas seguidas enquanto discutíssemos nossos pensamentos”, raciocina Pé Vermelho.

O formato de seu livro é o dos diálogos que manteve com o poeta por duas décadas de amizade. Leminski lhe revela a evolução de seus achados poéticos, Pellegrini defende sua literatura, negada por um invejoso ambiente cultural da época. Embora o veja pobre financeiramente, não o entende ralo, enquanto pondera sobre seus “erros”. Descreve os raciocínios trocados sobre direita e esquerda naquela época em que o Solidariedade polonês mudava a geopolítica contra os soviéticos. E pressupõe falas de Leminski, “marqueteiro” de sua figura pública, construída sobre um par de óculos e um bigode a evocar o líder Lech Walesa. Mas ele não lhe dissera tantas coisas nos sonhos? Pellegrini inicia ou termina como Leminski, vê-se como ele próprio, em um livre tanto faz.

Salta desse livro que Alice, poeta de alma própria, presente nas amizades de Leminski, fosse com Rita Lee, Jorge Mautner ou outro qualquer, esteja fora do jogo. Ela é ninguém diante do sonho vivido entre os dois amigos. No livro, mãe e esposa que faz o prato do marido à mesa, Alice apenas manda Leminski moderar na bebida, comer entre os tragos e evitar a vodca que ele usa espertamente, por não deixar mau hálito. Pellegrini responde que não poderia escrever sobre alguém que mal fala e de quem pouco sabe. Escreve que não é culpa sua o ego de Alice inexistir. “Mas aí eu estava brincando”, explica, rindo mais uma vez.

Alice leu o livro inteiro apenas quando o autor desistiu de esperar por seu retorno sobre os primeiros capítulos. Em um e-mail, disse a Pé Vermelho, para ela “Dinho”, que ele parecia trilhar o caminho dos traidores, ademais sobrepondo-se ao poeta no livro, sem lhe dar direito de replicar. Abandonado pela Nossa Cultura, Pellegrini procurou a Record, que não publicou o livro sem autorização (a editora, como a Companhia das Letras, afirma esperar a nova lei passar pelo Senado antes de mudar sua política de edição de biografias). Em 2013, Pellegrini jogou o texto na internet. Transformou-o em livro, com fotos cedidas pelos amigos, apenas agora que a Geração Editorial entendeu o projeto como um marco, a “última biografia editada antes do fim da autorização prévia”. Pé Vermelho conseguiu seu slogan, mas e Alice? A poeta não respondeu ao e-mail enviado pela reportagem sobre se entraria na Justiça contra o texto. Nem disse se aceitaria expor mais longamente seu ponto de vista e mesmo discorrer sobre sua arte. Mas uma coisa se sabe. O melhor instrumento para contar a própria história, uma escritora como ela tem.

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