Cultura

Candomblé é resistência

Macumba. Macumbeiros. Feiticeiros. Magia negra. Adoradores de Satã. Bruxos. Bruxaria. Vodu. O elenco de injúrias que tradicionalmente perseguem os cultos afro no Brasil tende a ecoar com maior vigor agora que o País, com o apoio considerável de sua população, verga-se sob uma teocracia gerida […]

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Macumba. Macumbeiros. Feiticeiros. Magia negra. Adoradores de Satã. Bruxos. Bruxaria. Vodu. O elenco de injúrias que tradicionalmente perseguem os cultos afro no Brasil tende a ecoar com maior vigor agora que o País, com o apoio considerável de sua população, verga-se sob uma teocracia gerida por corporações de uma fé infeliz e submissa e por charlatães miliardários, cujas mãos espertas vivem chafurdando nos bolsos dos fiéis.

O pentecostalismo, ou neopentecostalismo, que por aqui triunfa faz tempo elegeu como rivais o candomblé e os demais cultos afro-brasileiros. Não por acaso. As seitas evangélicas são o espelho invertido do candomblé: de origem branca, baseadas nos arbítrios de um livro antiquíssimo, de linguajar alegórico e arrevesado, as igrejas submetem seus fiéis ao temor de um deus furibundo e punitivo, ameaçam-nos com o fogo do inferno, legislam sobre a vida privada da congregação, desqualificam as mulheres, praticam o moralismo e o fanatismo. Têm ojeriza à beleza e à felicidade.

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À falta de melhores argumentos, pastores e pastoras executam violentos autos de fé contra seus vizinhos afro, especialmente na competição pelas almas desesperançadas nas periferias das metrópoles. Terreiros são atacados, mães de santo, agredidas, fiéis, ameaçados. No Brasil, a cada 15 horas há um relato policial por motivo de intolerância religiosa – sempre de mão única. Chegou ao ponto de a ialorixá Regina d’Yemanjá, líder do Axé Opô Afonjá, que há 132 anos atende em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, desistir de promover cultos noturnos, em razão de segurança, e recomendar aos fiéis que não saiam às ruas de branco.

Uma garota de 11 anos que a isso ousou foi apedrejada por um casal de Bíblia debaixo do braço. A Bíblia dessa gente desconhece o amor e a tolerância.

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Na cosmogonia panteísta dos cultos afro, orixás podem ser buliçosos e brincalhões, famintos por oferendas, gulosos por sacrifícios, sujeitos a caprichos, digamos, assim humanos, mas firmes na defesa de seus protegidos. São entidades ligadas à natureza, às águas, ao mar, às cachoeiras, às matas, acessíveis aos seus devotos – nada a ver com o panteão de figuras espectrais, distantes, que frequentam o cristianismo de vários matizes, prontas para eventualmente socorrer, mas quase sempre castigar. Sobretudo, os orixás não se submetem aos rigores da hierarquia, ainda que Oxalá tenha adquirido alguma precedência por sua participação na criação da Terra. Nem por isso é considerado um orixá superior a tantas outros.

Os orixás brincam nas matas e nas cachoeiras. Não seguem dogmas, não impõem castigos

Sincretismo. A celebração de Iemanjá e outras festas públicas mostram a faceta democrática do culto

A mitologia ioruba credita a criação da Terra a uma ideia levada por Oxalá a Olodumaré, o Ser Supremo. A Terra era, então, uma aguacenta e pantanosa imensidão, acima da qual havia o éter, o espaço celestial, morada das divindades. “Todo esse espaço”, argumentou Oxalá, referindo-se aos pântanos inúteis e selvagens, “não tem a marca de nenhuma inspiração ou coisa viva. Tudo é muito monótono.” Oxalá sugeriu cobrir os pântanos com terra e, assim, criar campos, florestas, morros e vales. “Um empreendimento ambicioso”, observou Olodumaré. “Quem faria esse trabalho?” Oxalá se candidatou. Não sem trabalho e muita ajuda, conseguiu. Iluminou-a e povoou. A primeira terra firme em que pisou chamou de Ifá – “aquilo que é amplo”. Ifá, na Nigéria, é a aldeia sagrada dos iorubas.

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Os mitos do candomblé, e são muitos, extensos, minuciosos, guardam, por sua própria natureza, um sentido simbólico, densamente poético, e não pretendem obrigar os fiéis a acreditar neles ao pé da letra, a fantasiar, por exemplo, a existência de um deus primordial, de camisolão e barbas brancas, acompanhado de uma coorte de arcanjos, o qual se exauriu ao criar o mundo em seis dias de 24 horas e, no sétimo, viu-se obrigado a descansar. Os evangélicos leem o livro do Gêneses como se fosse uma narrativa realista. Assim como toda a Bíblia.

Aos pés do barbudo desalmado, sucumbe o livre-arbítrio, silenciam a ciência, a medicina, o progresso da humanidade. A vontade de um Ser fictício e cruel prevalece.

O tal Ser Supremo é do gênero masculino, bem entendido. Irascível, é um suprematista com ímpetos genocidas, defende com unhas e dentes seu povo eleito e despreza os demais, a começar por aqueles que ele chama de filhos de Caim (leia-se, os negros). É até compreensível que certos líderes evangélicos ministrem os cultos paramentados com trajes que lembrem a nação israelita. Os cultos afro-brasileiros, ao contrário, vêm se convertendo cada vez mais ao matriarcado. Mulheres empoderadas comandam a confraria, presidem o culto, preparam os objetos sagrados, traduzem, nos búzios, a vontade dos orixás.

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Quando o sociólogo francês Roger Bastide esteve na Bahia, nos anos 50, estudando a linhagem religiosa dos nagôs, a predominância das ialorixás, as mães de santo, sobre os babalaorixás, os pais de santo, ainda não era absoluta. Nem por isso Bastide deixou de celebrar a autoridade moral das mulheres em ilhas no meio do mundo patriarcal. “Se, por um lado, sacerdotisas têm poder absoluto sobre o conjunto de fiéis”, escreveu Bastide (em O Candomblé da Bahia), “por outro lado têm também obrigações para com eles, tanto de assistência pecuniária quanto moral, o que torna os candomblés verdadeiras sociedade de socorro mútuo, de auxílio fraterno, que mantêm o espírito fraterno africano.”

Contraste. Mãe Menininha seduzia os fiéis pela doçura e tolerância. Malafaia pratica o ódio, o terror e a ganância

Os evangélicos podem consultar seus guias espirituais numa lista only for men dos milionários da revista Forbes: Edir Macedo, Valdemiro Santiago, Silas Malafaia, RR Soares, o casal Estevam Hernandes e “bispa” Sônia. A galeria das ialorixás icônicas tem a ver, por sua vez, com a sofrida história das nações africanas no Brasil e sua resistência à discriminação e ao ódio num país cuja Constituição determina, em letra morta, a liberdade de crença. Mãe Menininha do Gantois, Mãe Senhora, Mãe Stella de Oxóssi, Olga de Alaketu, Tia Massi, Mãe Silvia de Oxalá, tantas outras – o extenso panteão das soberanas dos tambores e dos atabaques enfatiza qual é o sexo forte dentro dos muros dos axés.

O matriarcado das ialorixás cuida do amparo espiritual, não tem um projeto de poder terreno

O fato de ter acolhido de coração aberto contribuições religiosas dos povos da floresta e do catolicismo não foi apenas um truque histórico de sobrevivência em ambiente hostil. O sincretismo é um exemplo de permeabilidade democrática. Com tantos ritos de tão diferentes procedências, etnias, nações e denominações (nagô, ketu, bantu, jejê, tambor-de-mina, angola, canjerê, cabula), os cultos afro não se dão bem com dogmas e mandamentos. A propósito, não há notícia de que – ao contrário das vorazes seitas evangélicas – o candomblé tenha um projeto de poder terreno. Mesmo a jurisdição do espiritual o candomblé aceita alegremente compartilhar.

Até mesmo o eventual sacrifício de animais, cada vez mais raro e cada vez mais contestado pelos não crentes, tem um significado ritual que não exprime nenhum ímpeto de violência gratuita. A comida do santo é o repasto que retempera as energias da comunidade. O candomblé é uma celebração da vida, não da morte.

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