Cultura

As terceiras margens

Na infância, era bom ter uma nota ao fim do bimestre como referência. Hoje o boletim em vermelho vem em cartas: de demissão, negação ou despedida

"Em Busca do Tempo Perdido", na versão ilustrada de Stéphane Heuet
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Quando completei 28 anos, brinquei com meus amigos que não tinha muito a comemorar: acabava de chegar à margem de erro dos 30. Hoje estou com 32, no limite da margem. Ano que vem não terei mais desculpas. A corda que ligava o barco à casa dos 20 já terá sido rompida de velho em direção aos 40.

Se me perguntarem, diria que é uma preocupação quase pueril, esta de envelhecer. Estamos longe de estarmos velhos, dizem meus amigos nascidos no alvorecer dos anos 1980, quando o país era governado por um militar, o mundo era dividido por um muro e a internet era ainda peça de ficção científica. Mas estamos longe de sermos novos, respondo, sem saber exatamente o que isto significa.

Digo isto sem qualquer crise ou ranço, embora tenham sido ridículas todas as minhas incursões aos lugares frequentados no fim da adolescência. Um amigo é quem costuma se queixar: tenho saudade de quando bebia e acordava no dia seguinte de ressaca; pois hoje, se bebo na véspera, acordo pela manhã doente. Faz sentido.

A verdade é que algumas desculpas usadas em anos anteriores já não funcionam mais. Não li Proust quando estava na faculdade. Não li dois terços do Corpo de Baile, de Guimarães Rosa. Não voltei sequer ao Grande Sertão: Veredas, como prometi aos 19 anos, entre o encantado e o desentendido. Meu inglês só definha: quanto mais leio, menos entendo, menos vontade tenho de me concentrar. E aquela viagem ao exterior para aprender tudo na marra? Ficou pra depois, e depois para depois, e agora também pra depois. Aos 32, posso olhar para meu livro de contos, escrito dez anos antes, com um grande trunfo: eu era jovem, os erros eram perdoáveis e os acertos, louváveis. Mas é no mínimo desconfortável concluir que dez anos no lombo não me levariam a fazer melhor – a diferença é que as justificativas começam a minguar.

Na profissão, tinha uma lista de personalidades que entrevistaria, desbravaria, tiraria todas as intimidades do âmago para construir novas interpretações da história, do mundo particular e dos mundos universais. Alguns da lista já morreram e outros se calaram. A bem da verdade, não quero mais entrevistar ninguém nem quebrar a linha de segurança entre meu pescoço e a história.

Entre tantos projetos deixados para depois, nada é mais desolador do que notar: na próxima Copa do Mundo estarei perto dos 36 anos, e talvez seja tarde demais para disputar minha primeira Copa do Mundo. Não me tornar jogador profissional será uma péssima forma de me preparar para os 40.

Com tanto a fazer, e tanta coisa deixada para depois, não me estranha que esta seja a fase das ansiedades mais agudas. O tempo se encurta, o fôlego se comprime e as desculpas se dissolvem. Ou melhor: se transmutam. Fugir de Proust era fichinha quando tínhamos todo tempo do mundo a favor. Agora o que nos resta é um intervalo entre o banho depois do trabalho e o relógio a apontar as dez da noite, que desce como um porrete todas as noites e me leva para cama mais cedo, na esperança de que no dia seguinte estaremos descansados, com a cabeça arejada e que o tempo, mano velho, será amigo.

Mas é nos sonhos que a coisa se complica. Na casa dos 30, passo os dias fugindo das perguntas fundamentais, sobretudo se eu passei de ano, raspando ou com folga, nas provas da profissão, das crônicas, das leituras atrasadas, das amizades, do casamento, da paternidade. Era bom ter uma nota ao fim do bimestre como referência: hoje o boletim em vermelho vem em forma de cartas de demissão, de negação ou de despedida. “Hoje não posso”. “Talvez amanhã”. “Está tarde”; “Amanhã todas as oportunidades estarão a nosso favor”. “Haverá tempo para sorver o tempo”. “Quem sabe teremos 20 anos de novo e poderemos enveredar pela noite sem acordar doente no dia seguinte”. Enquanto isso, me afogo na tentativa descabida de dar conta de tudo, o que explica minha mochila forrada de livros e papeis velhos, e minha ânsia em acompanhar os jovens do bairro nas incursões pelas quadras de futebol. (Semana passada, cheguei ao abuso de jogar no domingo, na terça, na quinta e no sábado. No domingo estava com a panturrilha estourada e um orgulho estufado no peito: Yes, we can. Ao que a noção do ridículo responde: “we quem, cara pálida?”)

Driblar a consciência com as tarefas do dia é fácil; o duro é dormir em paz. Dia desses, sonhei que estava numa casa de praia quando recebia um alerta de tsunami. Tinha mais ou menos uma hora para deixar o local, e simplesmente não conseguia porque voltava para trás toda hora para buscar algo, da carteira ao carregador de celular, passando pelo álbum da Copa, que não sei por que diabos carregava comigo. Acordo pela manhã rindo de tudo, driblando tudo, até chegar, de novo, a hora de dormir. Acordo aos pulos porque, desta vez, sonhei que estava numa velha estação ferroviária em Araraquara para mostrar o trem para meu filho, de um ano e meio. No meio-fio da plataforma, ele encuca de levantar do carrinho (que já não usa mais) para mexer na janela do vagão. Foi quando o trem, vazio, velho e empoeirado, começou a andar, e a soltar fagulhas de ferro e fogo crispadas na lâmina do trilho.

Quanto mais o trem corria, mais força o meu filho fazia para se soltar do carrinho e dos meus braços. Enquanto o segurava para afastá-lo do perigo, ele criava músculos, barba e argumentos, e eu já não sabia se quem eu segurava era o meu filho ou o meu pai.

Se fosse fazer qualquer balanço do que é ter 32 anos em 2014 esta imagem seria a mais fidedigna: uma confusão frequente de papeis. Lembra da faixa segura entre meu pescoço e a história, aquele carro velho e empoleirado em disparada? Pois ela me lembra o tempo todo que sonhos sonhos são, mas é bom não desprezá-los.

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