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As magias de Calvino

Não se trata de um ilusionista, mas de quem enxerga o que os outros não veem

Calvino em Sanremo, a cidade por ele considerada natal e que conhece como ninguém – Imagem: Ulf Andersen/Aurimages/AFP
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Encontro Italo Calvino se eu for a Sanremo. É onde a família Calvino ficou desde tempos, suponho, imemoriais. Igual à minha do lado materno, de sobrenome Giuliano. E aquele foi meu paraíso terrestre. No primeiro capítulo de uma das suas obras-primas, Se Um Viajante Numa Noite de Inverno, ele descreve a estação ferroviária de Sanremo, onde eu cheguei pela primeira vez aos 4 meses de idade. Começa aí, em um devaneio de memória, uma espécie de coletânea, de romances dentro do romance, para compor uma obra revolucionária, talvez a mais digna do futuro muito além da contemporaneidade.

Sanremo é uma cidade, hoje, de pouco mais de 100 mil habitantes, de médio porte em termos europeus, situada nas costas da Ligúria, condicionada pela pressão dos Apeninos a despencar abruptamente das alturas das montanhas de pedra. Mas não há quem conheça o lugar melhor do que Calvino, sabedor e palmilhador de todos os caminhos de sua terra natal, a fornecer-lhe os cenários majestosos e suas histórias. Existem, na verdade, mais de uma Sanremo, a moderna, buliçosa e vibrante, dona de um dos cinco cassinos a atuar na Itália e de um grande teatro, onde se realiza anualmente o célebre festival da música italiana dita popular, com todas as consequências desta presença de fama mundial.

Imagem: iStockphoto

Mas a cidade galga a montanha e sobe as encostas com um vigor capaz de incitar Calvino, de sorte a conduzir suas personagens ao longo destas rotas destinadas a vasculhar o passado, até as alturas da Igreja da Virgem da Guarda, protetora dos navegantes, de mira voltada para o porto apinhado de iates e barcos de pesca. Sobram, no alto mais alto, as ruínas destruídas pelo terremoto em coincidência com a epidemia da febre espanhola, logo após a Primeira Guerra Mundial. A ferrovia nasceu em meados do século XIX, incautamente ao longo do mar, e é desta que Calvino fala logo de saída, a evocar até o trilo opaco da campainha a anunciar a chegada do trem.

Hoje escala a encosta de pedra e a velha estação tornou-se, não sei se em homenagem a Calvino, um cimélio do passado. Singular recanto é Sanremo, sua igreja mais faustosa é a ortodoxa, com as torres desdobradas em volutas fartamente coloridas. E outra visita recomendável dá-se ao mercado do peixe e mesmo ao de hortifruti, onde triunfam abobrinhas de sabor e funções únicos chamadas, não por acaso, trombetas, por lembrarem as próprias no seu formato. Ao ler Calvino, sinto até o gosto do pescado e o perfume do mar e reconheço as árvores que ladeiam o caminho dos seus heróis ao descerem pela cidade velha em busca da praia, depois de passarem por arcos vetustos, janelas escancaradas sobre ambientes quase nus e chão de pedras polidas fincadas na terra.

Reconheço, porém, o toque mágico que vem de Calvino, a minha passagem por Sanremo é bem menos empolgante. Quando menino, até a adolescência, ficava na casa da minha avó, a casa bailarina pintada de branco imaculado, onde dançavam as sombras das frondes prateadas das oliveiras que a cercavam. Ali dormia em uma cama de ferro esmaltado aos pés do retrato soturno de uma ancestral amarelecida emoldurada em ouro e aquela presença tinha o poder de inquietar o meu sono. Muitas vezes me refugiava no quarto da vovó, onde se penduravam os retratos do casal de bisavós, ele polonês de olhar turvo, ela ligúria enérgica de nariz grego. Quando soube que eu me preparava, aos 12 anos, a partir para o Brasil, observou: “Quer dizer que por lá agora haverá dois Mato Grosso”. Em italiano, matto significa doido.

Depois do primeiro plano à beira-mar, a cidade velha sobe a encosta até a Igreja da Virgem da Guarda, protetora dos navegantes – Imagem: iStckphoto

Naquele aposento, um ramo de árvore de damasco roçava as venezianas e eu as abria para colher um fruto, bem mais perfumado do que o pêssego. Diante dos meus olhos, a bonança tornava o mar espelho do céu e um veleiro vinha singrá-lo frequentemente, e parecia voar. Em frente à igreja ortodoxa desdobra-se um passeio ajardinado onde, depois de ler o meu herói da literatura, passei a imaginar poetas ingleses a caminhar à procura do sol, vestindo calças de flanela creme, enquanto o siroco despenteia as palmeiras africanas da florida promenade de violetas e bocas-de-leão perplexas.

Aquela riviera eu conhecia perfeitamente. Ainda bem pequeno vinha Gaston, amigo de infância da minha avó, dona de uma impecável receita de ovos à provençal, naufragados em um mar de tomates e folhas de manjericão. Era no prato que ele mirava na hora do almoço, à mesa octogonal de cor verde montada à sombra de uma enorme oliveira. As árvores eram inúmeras, cenário do meu paraíso desde os raros espécimes de um eucalipto – australiano, repetia-se com respeito – e uma miú­da araucária, cuja origem não era declinada. Depois de enfrentar seus ovos afogados e uma fatia de crostata, Gaston convidava-me para um passeio a bordo do seu hispano-suíça e íamos até Nice, cuja praça principal tem o nome de um genovês marechal de Napoleão, Massena, e no promontório de Antibes habilitava-me a um gole de champanhe Salon no Hotel du Cap.

Calvino atiça o leitor até o fim com suas “lições americanas”, que haveriam de ser meia dúzia, mas a última faltou porque o escritor se mandou de Sanremo e da vida. Foram encomendadas por uma universidade dos Estados Unidos, Harvard. Com o tema leveza, a primeira me tocou muito, é uma aula da mais persuasiva escrita. •


Espólio literário dos mais valiosos

O centenário de Italo Calvino, a ser completado em outubro, enseja celebrações, edições especiais e a publicação de obras inéditas
Por Ana Paula Sousa

Foi no dia 15 de outubro de 1923 que o escritor Italo Calvino, um dos maiores do século XX, nasceu. Mas a celebração de seu centenário já começou. Pudera. Espólio dos mais valiosos, tanto em termos literários quanto comerciais, sua obra terá reedições e ganhará edições comemorativas mundo afora.

No Brasil, a Companhia das Letras deu início ao movimento que em outubro terá seu auge com a publicação de Um Otimista na América e Entrada na Guerra, ambos até então inéditos no País.

Um Otimista na América foi escrito ao longo do semestre que Calvino passou em Nova York, na década de 1950, e publicado apenas após sua morte. “Ele sai de uma Europa depauperada pela guerra e, ao chegar aos Estados Unidos, revê seus conceitos, e seus preconceitos, sobre a América”, diz Otávio Marques da Costa, publisher da editora. Entrada na Guerra, por sua vez, reúne três novelas curtas sobre sua vivência da Segunda Guerra Mundial.

No segundo semestre, serão mais dois títulos inéditos: Nasci na América, que ­reúne 101 entrevistas, e Por Último Vem o Corvo, sua primeira reunião de contos, publicada em 1949. Esses contos diz o publisher, não tinham ainda o componente fantástico que viria a marcá-lo e traziam elementos autobiográficos.

“Ele é um autor que teve diferentes fases, das mais inovadoras em termos de linguagem às mais realistas, e foi excelente em todas elas”, diz Costa. “Ele foi um brilhante observador da vida e de seu mundo, além de ter tido uma forte atuação política.”

E Calvino foi, ainda, um grande vendedor de livros. A agência Wylie, responsável por alguns dos maiores espólios literários – como os de Norman Mailer, Saul Bellow, Arthur Miller, Jorge Luis ­Borges, Albert Camus e ­Antonio Tabucchi –, começou a tratar do centenário de Clavino há pelo menos três anos.

“Trata-se de um evento internacional e a gente, aqui, toma também as nossas decisões”, diz Costa. Algumas delas foram as de lançar Se Um Viajante Numa Noite de Inverno e Por Que Ler os Clássicos em capa dura e com projeto gráfico especial, e relançar Todas as Cosmicômicas com ilustrações de Marcelo Cipis.

“Calvino foi um dos primeiros grandes autores dos quais a Companhia das Letras adquiriu o espólio, na década de 1990, e é aquilo a que chamamos de long ­seller”, diz Costa. “Alguns dos livros são adotados por escolas, o que faz com que sejam sempre vendidos. É o caso de O Barão nas Árvores, O Visconde Partido ao Meio e Todas as Cosmicômicas.”

Para o segundo semestre, estão sendo preparados uma mostra de cinema, com filmes baseados em seus livros, e um simpósio. Em 2024, terá acabado o ano do centenário, mas não a onda de publicações e revisitas. As correspondências do escritor, nunca publicadas, estão nas mãos de Mauricio Santana Dias, seu principal tradutor no Brasil.

Publicado na edição n° 1263 de CartaCapital, em 14 de junho de 2023.

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