Cultura

Divisões e os conflitos sempre foram normais no feminismo, diz historiadora

Em ‘Feminismos – Uma História Global’, Lucy Delap percorre 250 anos de história para desfazer mal-entendidos sobre a luta das mulheres no passado

Movimentos. Historiadora e professora da Universidade de Cambridge, a autora define o movimento feminista como “inacreditavelmente global e multifacetado” - Imagem: University of Cambridge e Rodrigo Buendia/AFP
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Na segunda-feira 7, véspera do Dia Internacional da Mulher, a professora Lucy Delap, da Universidade de Cambridge, destinou cerca de 40 minutos de sua agenda para conversar, via Zoom, com CartaCapital. É comum, quando o 8 de março se aproxima, que Lucy veja os convites para entrevistas e palestras crescerem. Mas no último ano isso se intensificou.

Historiadora de formação e especializada em estudos de gênero, Lucy é, no meio acadêmico, uma reconhecida pesquisadora do feminismo. Foi, porém, por meio do livro Feminismos – Uma História Global, publicado no Reino Unido em 2021 e agora lançado no Brasil, que seu nome se popularizou.

O trabalho, traduzido em vários países – Alemanha, Estados Unidos, Rússia, China, Lituânia, Polônia e Tailândia, entre eles –, pretende-se uma nova narrativa a respeito do feminismo. Lucy procura desconstruir tanto a ideia das “ondas” quanto a visão de que o feminismo tem avançado, no sentido de hoje lutar por “grandes coisas” ou ser mais radical.

“Desde o século XVIII há mulheres lutando por coisas grandes. O movimento não se dá em uma linha reta. Ele anda em círculos, e as mudanças não acontecem apenas porque o tempo avança”, diz, relembrando, de saída, políticos como Jair Bolsonaro e Donald Trump.

Antes de responder às perguntas, Lucy prefere, ela mesma, fazer uma: “Que tipo de ataque às mulheres faz o Bolsonaro?” O relato sobre o áudio do deputado Arthur do Val, a professora fica boquiaberta. No entanto, ao ouvir, na sequência, o comentário sobre o quão atrasado é o Brasil no trato da mulher, ela rebate a ideia:

“Eu não acredito nesse tipo de narrativa, sobre o Brasil, por exemplo, estar atrasado. Meu livro procura, justamente, desfazer esse tipo de ideia. O feminismo é um movimento inacreditavelmente global e multifacetado. E essa impressão que você tem sobre o Brasil é comum entre as mulheres de outros países. Enxerga-se o feminismo europeu ou norte-americano como estando em um nível mais avançado, mas isso não é verdade. No Brasil, no século XIX, as mulheres que lutavam pelo direito à educação estavam no mesmo momento que as mulheres europeias. Ainda há homens, seja na Alemanha seja na Finlândia, capazes de falar como esse político que você citou. Eu sinto, inclusive, que o feminismo tem ganhado força mais no Brasil por causa do Bolsonaro e do lugar que ele reserva às mulheres no discurso dele. Ao mesmo tempo, o fato de pessoas como o Bolsonaro e o Trump dizerem o que dizem mostra que as coisas não vão, simplesmente, melhorar com o tempo.”

FEMINISMOS – UMA HISTÓRIA GLOBAL.Lucy Delap. Companhia das Letras (336 págs., 84,90 reais).

CartaCapital: A senhora percorre 250 anos e estrutura o livro não cronologicamente, mas por temas. Qual é o seu objetivo com essa abordagem?

LD: Sinto que existe hoje um certo antagonismo em relação à luta feminista do passado, como se ela tivesse sido sempre racista ou feita apenas por mulheres brancas da classe média. Atribui-se ao feminismo atual maior sofisticação e nuances, mas, quando olhamos para as ideias defendidas no passado e para as estratégias de luta, encontramos muitos aspectos comuns. Acho que, se olharmos de maneira menos hostil para o passado, não só encontraremos conexões como também algo a aprender. As questões de raça tiveram de ser negociadas no passado, assim como há coisas que têm de ser negociadas hoje. Ou seja, olhar para trás nos mostra que não há nada de estranho em haver divisões dentro do feminismo. As divisões e os conflitos são normais, e não nos impedem de fazer política conjuntamente. Assim como posturas por vezes menos antagonistas em relação aos homens não necessariamente enfraquecem a luta.

CC: No seu doutorado, a senhora debruçou-se sobre uma publicação de 1911, a Weekly Feminist Review. Por que essa revista a interessou?

LD: Comecei a ler os volumes de 1911 e não consegui passar de 1912 (risos). Pensei que encontraria um registro do feminismo liberal, da luta das mulheres pelo direito de serem juízas e médicas, por exemplo. Mas não. A revista era totalmente ­avant-garde e tentava imaginar um outro mundo. Como seria o mundo se não houvesse dinheiro? Como as mulheres podiam conciliar o controle de natalidade com prazer sexual? Como seria uma supermulher (em referência ao conceito de super-homem de Nietzsche)? Pedir para votar é muito mais fácil do que se pôr essas questões. Ou seja, o feminismo não começou pedindo pequenas coisas para chegar às grandes. Mesmo o feminismo negro e o transfeminismo, nada disso é novo. A metáfora das ondas nos faz pensar no movimento como se não tivesse havido conflitos. Mas a história do feminismo não é apenas sobre solidariedade. Ela sempre foi sobre conflito racial, de gênero e de classe.

CC: Pelo que entendo, o feminismo, a seu ver, é uma chave por meio da qual podemos compreender o mundo. Da mesma forma que se pode interpretar o mundo por meio do marxismo, se pode fazê-lo por meio do feminismo. É isso?

LD: Exatamente. Podemos ter novas leituras sobre as guerras ou os impérios a partir da luta feminista.

CC: Como pesquisadora, a senhora passa, inevitavelmente, pelas questões do corpo. Nesse ponto específico, acha que avançamos de fato?

LD: O que mudou é que os homens, cada vez mais, se preocupam com os próprios corpos. Mas, se eles fazem isso, não é porque a sociedade os escrutina, como faz com as mulheres. As mulheres, por sua vez, usam calças e não têm os corpos sexualizados como antes. Mas os distúrbios alimentares estão aí, e olhe, por exemplo, para a quantidade de cirurgias plásticas na Coreia do Sul. Quase todas as mulheres sul-coreanas acham que precisam modificar algo em seus corpos. Uma boa forma de se olhar para o feminismo é analisando a indústria global de cirurgias plásticas, que não para de crescer. Isso não deixa de ser um tipo de opressão feminina. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1199 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Feminismos em conflito”

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