Cultura

Antes, um mês

Eu me tornei pai em um tempo de revoltas, protestos e transformações. Nem o casarão da Paulista ficou de pé. Por Matheus Pichonelli

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Ontem, 9 de julho de 2013, completei um mês de estadia em minha casa provisória. É um quarto-e-sala-e-cozinha que tem apenas duas portas: uma que dá num corredor para outros apartamentos da pousada e outra para o banheiro, onde um chuveiro temperamental só despeja água quente quando acorda de bom humor. À nossa volta tem um galinheiro, um campo de futebol, uma casa em construção.

Vim para cá com minha mulher, minha sogra e minha cachorra para ficar perto do meu filho, que nasceu dois dias antes da mudança em uma maternidade de Campinas, próxima à nossa residência oficial, em Valinhos, para onde viajo todos os finais de semana. Ele nasceu quase um mês e meio antes da hora, bem abaixo do peso, e sem musculatura suficiente para respirar, algo que teve de aprender na marra em uma UTI neonatal.

É desta casa que escrevo estas e outras linhas, graças à sensibilidade dos meus chefes da Redação, que me autorizaram a improvisar um escritório sobre uma mesa de plástico onde apoio um computador e um celular e fico de olho nas notícias da televisão.

Trabalhar de casa, mesmo que uma casa provisória, tem suas vantagens. O intervalo entre abrir os olhos e abrir o expediente, geralmente às oito da manhã, ainda de pijama e com o café fumegando, seria maior caso tivesse de encarar o trânsito de São Paulo, onde passo os dias das semanas desde fevereiro de 2002. Para ficar perto do filho, a gente se acostuma a tudo: respondo emails, falo com até cinco pessoas da Redação ao mesmo tempo, faço a ronda no noticiário, edito, publico, destaco e vendo nas redes sociais os textos de repórteres, colunistas e colaboradores até quase o dia se pôr. Sem isso, as semanas demorariam séculos para correr em intervalos entre uma visita e outra ao berçário.

Nessas visitas, tudo parece ter virado do avesso ou ganhado uma nova dimensão. Por exemplo: respirar, até ontem, era um gesto involuntário e automático ao qual não atribuía valor nem qualidade. Não respirava bem ou mal; apenas respirava. Quando meu filho começou a respirar bem, sem ajuda de aparelhos, meu ar ganhou dimensão e espaço.

A noção de grandeza, ao longo do processo, também mudou. Um quilo, hoje, é quase a expansão do universo; um mililitro de leite no estômago, uma conquista de terras virgens; uma piscadela de cumplicidade, um troféu.

Não sem certa ironia, o mundo que eu conhecia do lado de fora também parece ter ficado em algum canto do início de junho, quando eu era apenas filho e não filho e pai. Quando vim pra cá, a avenida Paulista, onde morei e/ou trabalhei nos últimos 11 anos, ainda não era a Sierra Maestra de manifestantes que ousaram contestar o estado das coisas e conseguiram, na marra, revogar uma até então irrevogável decisão do prefeito de São Paulo sobre o aumento da passagem de ônibus. De longe eu assisti à chegada dos manifestantes ao quintal da minha antiga casa; com eles, a esperança de que uma nova relação entre representantes e representados, sem a intermediação das balas de borracha, se consolidava.

Por aqui, cheguei a calcular tanto mar nos separava para pedir que, em minha ausência, guardassem um cravo para mim.

Parecia um outro tempo. No começo de junho, o brasileiro era chamado de povo acomodado e os manifestantes, de vagabundos. Reforma política não constava da agenda presidencial; era só um tópico da aula de ciências sociais. Em um mês, um gigante foi despertado e voltou a dormir. Aos protestos se juntaram broncas difusas como o fim de partidos políticos, do Bolsa Família, das tomadas de três pontas e das pombas das praças públicas.

Naquele mês já distante, poucos sabiam quem era Edward Snowden e as arapongagens do governo americano eram apenas paranoia de quem se imaginava perseguido por um império do mal. Tampouco era possível imaginar que a revolução popular que a duras penas derrubara uma ditadura no Egito terminaria em um novo golpe de Estado, daqueles clássicos e sem riscos à semântica. A Primavera Árabe conheceria o seu inverno.

Em junho, apesar das turbulências anunciadas, Eike Batista ainda era chamado de futuro homem mais rico do mundo. Em junho, era um feito ainda possível; em julho, uma deselegante piada de redes sociais.

Quem acompanha futebol percebeu que alguma coisa estava fora da ordem quando viu o ultrapassado Luiz Felipe Scolari engatar uma quarta marcha na seleção brasileira, 22ª equipe do ranking da Fifa e sem vencer um clássico desde 2009: em menos de um mês, o time atropelou adversários como França, México, Itália, Uruguai e Espanha, esta sem levar gols em partidas decisivas desde 2008 – numa sapecada, levou três, um deles de Neymar, o “pipoqueiro-geral da República” que se transmutara em jogador decisivo. Isso sem contar as quedas de Vanderley Luxemburgo, Muricy Ramalho e Ney Franco. O futebol, que tantas vezes explicou a vida, acabava de absorver um período de mudanças bruscas.

Fato é que, quando voltar à vida normal – o trabalho em São Paulo e a vida pessoal, no interior – já não vou encontrar a mesma cidade. E isso não é um estado de espírito: pelo jornal, descubro que um trecho entre a casa e o trabalho levou não um mês, mas uma manhã, para ir ao chão. O casarão de número 1.373 da Avenida Paulista, entre as alamedas Pamplona e Casa Branca, foi demolido sem aparentemente ter tempo para despedidas.

Nos últimos anos, passei por este endereço quase todos os dias sem jamais deixar de reter a atenção no anúncio de “Cuidado – Cão Bravo”. Estava no portão de ferro que escondia a fachada de uma bela residência dos anos 1960 – e que, até ontem, ainda destoava da paisagem de imensos prédios espelhados. A placa era quase uma piada pronta: o pastor alemão que vivia ali não era bravo, era só. Não houve dia, nessas andanças, que nossos olhos não se encontraram: ele, com uma humanidade latente de quem pede atenção para dobrar o abandono; e eu, não menos só, tentando dobrar as friezas daquela avenida com suas sirenes e buzinas e assaltos e compro-e-vendo que confundiam minha pretensa pontualidade (esta que tantas vezes me fez adiar uma capacidade natural de sentir, pensar e agir). Na simbiose, eu seguia o rumo com a garganta travada – o nó se desmanchava antes de chegar à esquina – e o cão seguia só, com seu olhar curioso a ultrapassar as poucas brechas de um portão que separava o seu silêncio de um universo (literalmente) paralelo e caótico. De vez em quando estes mundos se encontravam, quando ele recebia satisfeito uma mão de quem, do lado de fora, se atrevia a duvidar dos perigos anunciados pela placa.

O casarão agora está no chão. Não há mais grades de ferro nem paredes nem anúncio sobre perigos. Parece a materialização de um tempo de alternâncias: definitivamente, o mundo que eu deixei para trás – e do qual, mesmo distante, não me desconectei – nunca mais será o mesmo.

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