Academia de Danças

Que mistério tem um disco de Egberto Gismonti?

Conheci melhor Egberto Gismonti quando chegou, pelo correio, na minha casa, o disco de vinil Academia de Danças

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Outro dia, estava sentado na sala de espera do aeroporto Santos Dumont, quando vi passar Egberto Gismonti. O aeroporto estava cheio de gente aflita, com um olho nos smartphones e outro no painel luminoso anunciando os voos, os atrasos, os cancelamentos.

Egberto Gismonti veio em passos mansos, com aquela toquinha de crochê, deixando o vasto rabo de cavalo jogado pra trás. Trazia nas mãos, guardado dentro de um bonito estojo,  um violão. Foi caminhando, caminhando e ninguém percebia a sua presença por ali.

Tirei os olhos do livro do Francisco Bosco que estava lendo e fui acompanhando Egberto Gismonti sumir, lá longe, lá pro lado dos portões 1 e 2.  Fechei o livro e fiquei refletindo, por um tempo, que país é este.

Ouvi Gismonti pela primeira vez lá no início dos anos 70, quando ele ainda colocava voz em suas composições. Foi cantando O Sonho que conheci o músico da cidade do Carmo.

Sinto que ora salto
Meu foguete some
Queimando espaço
Tudo vejo e abraço
A vaidade

Conheci melhor Egberto Gismonti quando chegou, pelo correio, na minha casa, a mais de dez mil quilômetros de distância da Cidade Maravilhosa, embalado entre duas placas de isopor, o disco de vinil chamado Academia de Danças.


Era um tempo de descobertas ainda. Sem falar um pingo de francês, eu andava cantando baixinho London London pelas ruas de Paris. Cuidava de duas menininhas – a Elodie e a Cèline – lavava pratos, descascava batatas, lavava privadas e limpava garrafas de Coca-Cola num porão ao lado do Café Le Deux Magots,  numa Cidade Luz que me deixava encantado, ao mesmo tempo que morto de cansaço.

Assim que rasguei aquele papel pardo que envolvia o Academia de Danças, me espantei com a beleza dos nomes das canções, verdadeiros primores: Palácio de Pinturas, Jardim de Prazeres, Celebração de Núpcias, A Porta Encantada, Continuidade dos Parques. Mais pareciam nome de pinturas, óleo sob tela que, na verdade, eram mesmo, obras primas.

Apesar do som ruim e tosco que tinha em casa, ouvia as sonoridades cristalinas do disco, aquela maravilha de disco, recém chegado do país tropical.

Todas aquelas canções acabaram virando trilha sonora dos primeiros dias de Paris. Era um tempo de colar com alfinetes numa parede de cânhamo, todas as fotografias que iam chegando do meu país em envelopes verde e amarelos. Lá ficavam pra visitação pública, aqueles folhetos dos movimentos pra derrubar a ditadura militar, além de cartões postais do Mineirão, do Corcovado, do Elevador Lacerda, de vitórias-régias e daquela selva de pedra chamada São Paulo

Os anos foram passando e o Academia de Danças sempre presente, ao meu lado, como se fosse um disco de cabeceira. Até mesmo no último dia, antes da volta, ele foi colocado pra rodar e devidamente reverenciado na vitrola, antes de ser empacotado de novo.

Nunca mais me desliguei de Egberto Gismonti, mas confesso que jamais consegui completar sua discografia. Ainda me faltam uns dez discos dele, gravados na ECM de Oslo, que nunca achei nas lojas, logo eu, rato de sebos.

Tudo isso me veio a cabeça naquela tarde de calor no aeroporto Santos Dummont, quando vi Egberto Gismonti passar, como um anônimo, carregando o seu violão.

Quem ali, seria capaz de reconhecer um dos maiores músicos do país, autor de canções como Dança das Cabeças, Águas Luminosas, Bambuzal, Coração da Cidade, Baião Malandro e Palhaço? Acho que ninguém.

Só me restou voar 50 minutos, chegar em casa e colocar Academia de Danças para ouvir. Pela enésima vez. E não será a última.

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