Cultura
A vida real de Adèle
Adèle Exarchopoulos, que estreou no cinema aos 13 anos, ao lado de Jane Birkin, chega aos 29 como a estrela do provocativo ‘Passagens’


Para Adèle Exarchopoulos, o primeiro gosto do estrelato teve, literalmente, sabor de Toblerone. À época com 13 anos, a jovem parisiense havia acabado de ser escolhida para participar de seu primeiro filme, Les Boites (As Caixas), estreia de Jane Birkin na direção, e foi convidada para ir à casa do ícone.
“Fui ao banheiro lavar as mãos”, lembra Adèle, “e vi, pela primeira vez, uma banheira com pés de garra, com uma tigela de mini-Toblerones ao lado. Pensei: ‘Por que alguém come chocolate enquanto toma banho? Isso é muito legal!’ E Jane disse: ‘Você quer dormir aqui? Pode tomar banho e comer uns chocolates’.”
Essa lembrança a faz sorrir. Estamos conversando via Zoom, menos de um mês após a morte de Jane, aos 76 anos, em Paris. Adèle lembra-se dela com carinho: “Foi a primeira pessoa que me deu uma chance. Era boa, gentil e amorosa”.
Elas se reencontrariam ao longo dos anos, mas nada ficaria gravado em sua mente como a filmagem de Les Boites, em espaços fechados. “Cinema é viver coisas intensas com as pessoas por um certo período de tempo. Depois todos voltam para suas vidas normais”, descreve. “No fim, é como uma minimorte. Você deixa de compartilhar aquela intimidade, mas guarda um carinho eterno por aquelas pessoas.”
Eu disse a Ira Sachs que não tenho problemas com uma cena de sexo, mas que não queria que vissem meu corpo como viram antes
Adèle, que está com 29 anos, passou por muitas histórias de amor desde então. E nem por isso passou a senti-las menos profundamente. Aos 19, ela estreou como protagonista com uma atuação impressionante em Azul É a Cor Mais Quente (2013).
No filme dirigido por Abdellatif Kechiche, ela interpretava uma colegial mergulhada em um relacionamento lésbico volátil com uma estudante de arte mais velha. Então uma novidade no festival de Cannes, ela e a outra estrela, Léa Seydoux, dividiram a Palma de Ouro com Kechiche. Adèle ganharia ainda um prêmio César.
Seu último filme é um triângulo amoroso de emoções agudas: o requintado drama de relacionamento de Ira Sachs, Passagens, que está em cartaz nos cinemas e chegará depois à plataforma MUBI. No novo longa-metragem, ela interpreta Agathe, professora que se interpõe entre o cineasta polissexual Tomas (Franz Rogowski) e seu parceiro.
Fiel ao estilo do roteirista e diretor americano, Passagens é um filme de sentimentos crus e intimidade física. Na tela, o caso entre Adèle e Rogowski se desenrola por meio de diálogos violentos e cenas de sexo explícito. Nos Estados Unidos, algumas cenas desagradaram aos responsáveis pela classificação indicativa, que reservam à produção um certificado NC-17, comercialmente restritivo.
Personagene. Em Passagens (2023); Azul É a Cor Mais Quente (2013) e, ainda menina, em Les Boites (2007) – Imagem: Pyramide Distribution, Imovision /WB e MUBI
Adèle não vê nada de provocativo no filme. “Todos passamos por esse tipo de atração sensual, na qual conhecemos uma pessoa e sabemos que vamos fazer sexo com ela. E isso é uma sensação estranha”, diz. “Talvez não seja tão bom. Talvez você fique desapontada. Mas você sabe que vai acontecer. E isso é emocionante.”
As cenas de sexo com Rogowski são as mais abertas que filmou desde aquelas gráficas e prolongadas com Léa Seydoux. Essas cenas, usando órgãos sexuais protéticos, mas sem dublês, foram muito controversas, e Kechiche foi acusado de explorar as jovens estrelas. Adèle estava decidida a fazer de Passagens uma experiência diferente.
“Eu disse a Ira Sachs que não tenho problemas com uma cena de sexo, mas que não queria que vissem meu corpo como viram antes”, diz. “Ira não estava especialmente interessado em ver meus seios e meu corpo. Sua intenção era captar duas pessoas de culturas diferentes que não conseguiam colocar em palavras seu desejo. Concordamos em não tratar a cena como um menino descobrindo o amor com uma menina. A cena era mais sobre duas pessoas tentando se buscar, em uma sedução mútua. Há algo realmente físico entre Franz e mim, mas também ficou claro, entre nós, quais eram os limites.”
Isso não significa, contudo, que ela tenha sido pega de surpresa no filme de Kechiche. Diz que, na verdade, estava despreparada para o processo de revelar o filme ao mundo e para os comentários que provocou. “Hoje, com mais maturidade, sei que foi uma experiência muito dura no sentido do comprometimento que nos pediram em algumas cenas”, conta. “E, provavelmente, a controvérsia prejudicou o projeto e a beleza dele. Estávamos fazendo algo que pertencia a nós.”
Cinema é viver coisas intensas com as pessoas por um certo período de tempo. Depois, todos voltam para suas vidas normais
Apesar de todas as lembranças conflitantes, o filme ainda lhe é caro. “Tenho muito amor por Kechiche”, diz. “Foi uma filmagem da qual saí dizendo a mim mesma: ‘Não poderia ter sido melhor’. E isso é muito, muito raro quando você é uma atriz. Foi, de certa forma, como filmar a vida, como fazer um documentário sobre minha própria personagem.”
Dez anos depois, Adèle é uma atriz mais confiante e, ao mesmo tempo, mais recatada, diz. Isso aconteceu depois de ter se tornado mãe de Ismael, nascido em 2017, fruto de um relacionamento com o rapper francês Mamadou Coulibaly – o Doums. “Eu me sentia mais livre antes de ser mãe”, diz. “Agora que sou mãe, não é que esteja mais tímida, mas vejo a intimidade como algo sagrado a oferecer – seja a uma personagem, seja a alguém na vida.”
Passagens é um dos poucos filmes em inglês feitos por Adèle desde que ganhou fama – outro, o drama político A Última Fronteira, de Sean Penn, não lhe caiu tão bem. E o reino dos sucessos de bilheteria de Hollywood alcançado por Seydoux não é algo por que anseie.
“Depois de Azul…, consegui uma agente americana, que me disse: ‘Ok, você tem de vir para LA e fazer reuniões’”, relembra. “Então fui para a Paramount, Sony, Spielberg, tudo. E todos me disseram: trabalharemos juntos um dia. Após a primeira reunião, ligo para meu pai: ‘Vou trabalhar com a Paramount!’ Duas horas depois, vou à Sony e me dizem a mesma coisa. Ligo para meu pai de novo: ‘Ok, nunca vou trabalhar aqui’.” Ela ri. “É interessante. Você só tem de aprender.”
Criada no 19º distrito de Paris, filha de uma enfermeira e de um professor de violão polivalente, Adèle começou a atuar por acaso. “Eu não sabia nada sobre teatro. Meu pai adorava assistir a filmes em DVD, mas isso é tudo”, conta. “Meus pais diziam: você pode escolher uma atividade. Tentei tocar violão, mas não deu certo. Tentei esporte, mas era muito preguiçosa. Depois tive uma aula de improvisação e gostei muito. Para mim, era apenas um playground onde eu poderia ser um vegetal ou poderia ser Maria Antonieta. Então um dia apareceu um diretor de elenco e disse: ‘Alguém quer fazer um teste?’ Eu pensei: por que não?”
Mesmo após o sucesso de Azul…, a adolescente não via a atuação como muito mais que uma brincadeira. “Sinceramente, foi só quando me tornei mãe que disse a mim mesma: Ok, isso é um trabalho”, diz. “Antes eu ligava para meu pai e dizia: ‘Papai, estão me pagando para comer doce e jogar fliperama’. Agora é diferente, mas tento manter aquele prazer e inocência.”
A alegria de habitar outras pessoas ainda não envelheceu. “Fazer filmes é para pessoas que se entediam rápido: é diferente a cada vez, você tem de correr riscos, cruzar personagens com uma moral muito diferente da sua e ter empatia por elas, mesmo que você odeie alguma parte delas. Isso faz com que eu me sinta realmente rica por dentro.”
E nos dias mais difíceis – digamos, depois de filmar uma cena de sexo intensa – como ela relaxa? “Do jeito francês”, diz, divertida. “Você faz uma piada e fuma um cigarro.” •
Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1274 de CartaCapital, em 30 de agosto de 2023.
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