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A vida depois do sucesso

Jeferson Tenório dá aulas como professor-visitante em uma universidade nos EUA e prepara um novo romance sobre as cotas raciais

Imagem: Carlos Macedo
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Há pouco mais de um mês, ­Jeferson Tenório deixou São Paulo, cidade para a qual tinha se mudado este ano, para ir viver em Providence, no pequeno estado de Rhode Island, nos Estados Unidos. Ali fica a Brown University, onde o escritor brasileiro será professor-visitante até o fim deste semestre.

O único lamento de Tenório, ao mudar-se, foi não ter tido o tempo necessário para transferir seu título de eleitor. Foi dos Estados Unidos que, na segunda-feira 3, ele escreveu, na coluna que mantém no UOL, sobre a necessidade de compreensão, por parte da esquerda, desse poder de mobilização dos ultraconservadores.

“Ainda não conseguimos captar exatamente de que modo ela opera para além do uso de fake news”, refletiu. No dia anterior, Tenório tinha aparecido, ao lado de figuras ilustres, em um ensaio fotográfico chamado Democracia, feito por Bob Wolfenson para a Folha de S.Paulo.

Desde que lançou O Avesso da Pele (Companhia das Letras), em 2020, um dos mais belos romances brasileiros recentes, o escritor viu sua vida se transformar. O livro venceu o Prêmio Jabuti em 2021, já foi traduzido em 12 países e acaba de ter um contrato de publicação assinado com a China, e virará um longa-metragem.

Estela Sem Deus, livro publicado antes de O Avesso da Pele, inspirado em sua mãe, foi reeditado

Professor de português, literatura e redação em escolas públicas e privadas por 16 anos – antes foi, entre outras coisas, empacotador de supermercado, atendente de lanchonete e auxiliar administrativo –, Tenório tem podido, pela primeira vez, dedicar-se exclusivamente à literatura e à vida acadêmica.

Também pôde, recentemente, ver o livro que antecedeu O Avesso da Pele ser relançado e ganhar nova vida: Estela Sem Deus, que começou a ser escrito em 2016 e saiu em 2018. Enquanto o narrador de O Avesso da Pele é um filho que tenta reconstituir a vida do pai, um homem que lutou para que a cor de sua pele não determinasse o seu destino, a narradora de Estela Sem Deus é uma menina cujo destino está entrelaçado ao da mãe, uma empregada doméstica.

A inspiração veio da mãe do autor que, assim como Estela, foi viver no Rio de Janeiro, na casa de uma parente. “Ela soube de meu plano de escrever o livro por meio de uma entrevista. ‘Que história é essa de que você está fazendo um livro sobre a minha vida?’ Investi muito seu tempo na construção da personagem, porque ela estava biográfica demais”, diz.

“O livro poderia se chamar Estela Sem Homens. Há um Deus masculino, e patriarcal, que a impede de se libertar”, prossegue, descrevendo as figuras do irmão, do pai e do pastor, tão constitutivas do conservadorismo que nos alarma. “Foi um livro muito difícil de escrever. Tive de me entender como homem. Fui parar na terapia, inclusive. Que masculinidade era essa que eu estava exercendo?”

Muitas das histórias chegaram até ele em sua prática cotidiana de professor de escolas públicas. Algumas, pesquisou de maneira mais aprofundada. “No caso do aborto, em especial, fui a clínicas para saber como elas lidavam com aquela situação e entrei em fóruns de discussão”, conta. “Conforme fui escrevendo, cheguei a alguns elementos incontornáveis, como a sexualidade e o saber dizer não. A personagem junta todas as suas forças para dizer que quem manda no corpo dela é ela.”

ESTELA SEM DEUS. Jeferson Tenório. Companhia das Letras (184 págs., 64,90 reais)

A Estela de Tenório tem muito da ­Mabel de Solitária (Companhia das Letras), de Eliana Alves Cruz, e sua mãe poderia ser a avó a quem Djamila Ribeiro se dirige em Cartas Para a Minha Avó (Companhia das Letras). Questionado sobre essas similaridades, o escritor apenas assente: “As experiências negras, no Brasil, são muito parecidas mesmo. As trajetórias se repetem, têm muitas semelhanças”.

Talvez por isso sua própria trajetória ainda lhe cause certa estranheza. Nascido em Madureira, na Zona Norte do Rio, em 1977, ele mudou para Porto Alegre com a família aos 13 anos. Os sonhos, em sua casa, eram basicamente aqueles ligados à sobrevivência.

“Ser escritor não estava nos meus planos. Nem nos planos de minha mãe”, escreveu, não faz muito tempo, sobre os cumprimentos que recebera em um Dia Nacional do Escritor. “A princípio, o plano era ter onde morar, não se envolver com drogas, nem com a polícia, nem com as más influências e, claro, manter-se vivo. O mais que pudesse. Sobreviver era a nossa prioridade. Nesse tempo, os livros não tinham chance com a gente. A vida era mais urgente que a ficção.”

Mas a ficção, descobriria, pode ser também uma forma de reagir à vida predeterminada pelo racismo e pelas barreiras socioeconômicas. O Beijo na Parede, seu primeiro romance, lançado em 2013, ganhará uma nova edição pela Companhia das Letras até o fim do ano e, enquanto ministra aulas sobre literaturas luso-africanas e prepara conferências – uma delas, sobre a forma como Deus foi sequestrado pelo bolsonarismo –, Tenório prepara um novo romance.

O livro, que se chamará De Onde Eles Vêm, acompanha três personagens negros desde a entrada deles na universidade, por meio da lei de cotas. Tenório, ele próprio da primeira turma de cotistas da Universidade Federal do Rio ­Grande do Sul, quer mostrar os embates e as mudanças epistemológicas que marcaram esse caminho. Mais uma vez, usará a juventude para expor os mecanismos de opressão e as possibilidades de libertação na sociedade.

Questionado ainda, ao fim da entrevista, se a nova rotina de entrevistas, palestras, colunas e demandas mil alterou em alguma coisa seu processo de escrita, ele sorri. “Eu nunca tive paz para escrever”, constata, antes de citar o incontornável marcador de classe. “Minha vida sempre foi entre aulas, alunos… Não tenho bloqueio criativo.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1229 DE CARTACAPITAL, EM 12 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A vida depois do sucesso “

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