Cultura

A trágica morte de Marília Mendonça revela as engrenagens de um mercado milionário

Ao enveredar Brasil adentro, os astros da música sertaneja acabam por revelar o próprio País

Brasil adentro. A artista, de 26 anos, foi vítima de um acidente aéreo enquanto viajava de Goiânia para Caratinga (MG). (FOTO: Redes sociais)
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“Viva rápido, morra jovem”, dizia Nick Romano, um tipo marginal eternizado no filme O Crime Não Compensa (1949), estrelado por Humphrey Bogart. O bordão virou título de uma biografia do ator James Dean, morto aos 24 anos, e, muitas vezes, acompanha os obituários dos roqueiros adeptos de um estilo de vida hedonista que morreram cedo demais. No Brasil atual, essa frase parece cair bem, sobretudo, aos artistas dos gêneros mais populares da música – o sertanejo à frente.

Em seis anos, pelo menos três cantores de sucesso morreram de forma trágica no auge da carreira. Em 2015, o carro que transportava o astro sertanejo Cristiano Araújo e sua namorada capotou na pista da rodovia BR-153, entre Morrinhos e o trevo de Pontalina, em Goiás.

Dois anos atrás, o monomotor que tinha como passageiro o cantor de forró eletrônico Gabriel Diniz caiu em Estância, no sul do estado de Sergipe, causando a morte precoce do intérprete do hit Jenifer. Pedro Leonardo, filho do cantor Leonardo, por pouco não engrossou a lista de acidentes fatais. Em 2012, seu carro capotou próximo à cidade mineira de Tupaciguara. Pedro sofreu traumatismo craniano e retirou um baço.

Duplas e cantores sertanejos faziam, pré-pandemia, de 25 a 30 shows por mês pelo País

No dia 5 de novembro, foi Marília Mendonça quem morreu na queda do avião que a levaria de Goiânia para Caratinga, em Minas. Conhecida como “rainha da sofrência”, Marília vivia, aos 26 anos, um sucesso incontestável e havia expandido sua presença para além do universo sertanejo: cantou com Gal Costa e foi citada em uma letra de Caetano Veloso.

Se a comoção causada pela partida de Marília diz muito sobre seu talento, diz muito também sobre o mercado musical. Segundo a Crowley Broadcast Analysis, empresa que afere a popularidade das rádios no Brasil, a turma da bota e do chapelão respondeu, nos últimos dois anos, por mais de 60% da música consumida no País (ver quadro abaixo) – tendo chegado a 66,38%. É uma audiência cinco vezes maior do que a de pagode, pop e forró.

Como há muito tempo se sabe, o mercado da música sertaneja foi impulsionado pelo agronegócio – muitos artistas se apresentam em feiras do setor e, além disso, a presença do dinheiro em cidades de fora do eixo Rio-São Paulo faz a roda do gênero girar. Há, além disso, o investimento pesado em marketing. Estima-se um gasto inicial de 3 milhões de reais para lançar um novo artista. Não se pode, porém, ignorar a disposição dos artistas, muitos de origem também popular, de viver na prática o verso de Nos Bailes da Vida: “Todo artista tem de ir aonde o povo está”.

Duplas e cantores sertanejos apresentam-se praticamente em qualquer lugar que tenha um palco: das festas de peão a comemorações de aniversário de cidades localizadas nos cantos mais extremos do País. Nesse caso, o avião de pequeno ou médio porte funciona como facilitador. As aeronaves levam os artistas a locais onde os aviões comerciais não chegam, pousam em qualquer tipo de pista e tornam o deslocamento mais rápido. Esses astros também não conhecem tempo ruim.

Fonte: Crowley Intelligence Plataform

Fonte: YouTube Music Charts

Certa feita, a dupla Fernando & Sorocaba, ao saber que, por causa das más condições meteorológicas, não conseguiria pousar em Londrina – de onde seguiriam de carro para Apucarana –, pousou no interior de São Paulo e seguiu de carro para o Paraná, chegando à festa da cidade minutos antes da apresentação.

“O Brasil é um país de proporções continentais e a gente gosta de subir no palco e atender as pessoas. Mas se deslocar até o local e correr os riscos do trajeto é o que faz a gente repensar”, declarou Sorocaba, em depoimento ao programa É de Casa, da Globo, após a morte de Marília.

Segundo dados da Associação Nacional de Aviação Civil (Anac), a chance de uma aeronave de pequeno ou médio porte sofrer um acidente é 16 vezes maior do que a de um avião comercial. Antes da pandemia, não era incomum que um artista sertanejo, para saciar a voracidade do mercado, se submetesse a uma rotina insana de 25 a 30 apresentações por mês.

Tal engrenagem, além de aumentar os riscos envolvidos nos deslocamentos, prejudica a performance dos artistas – afinal de contas, quem consegue fazer de duas a três apresentações por noite? Isso, sem falar nas consequências emocionais e na desestruturação familiar. Em 2019, Zé Neto, da dupla com Cristiano, desatou a chorar num palco porque o filho pequeno não o reconhecia mais, de tanto que ficou fora de casa.

Cada vez mais, grandes empresas e marcas disputam espaço em lives e shows do gênero

A triste ironia em torno da morte de Marília Mendonça é que ela era uma das que se preocupavam com os males da superexposição. Conforme o sucesso foi aumentado, a artista passou a topar, no máximo, uma apresentação por noite para não cansar a voz e ter um tempo maior com a família – Marília deixou um filho de 2 anos. Reduziu ainda as aparições na tevê, a fim de preservar sua imagem, e passou a dar pouquíssimas entrevistas. Nunca se descuidou, no entanto, do corpo a corpo com o público. No dia do acidente fatal, chegaria mais cedo à cidade mineira para ter tempo de atender os fãs.

A biografia da Marília é tão conturbada quanto suas letras sobre mulheres traí­das, amantes e solidão. Quando o padrasto, obreiro numa igreja evangélica, abandonou a família, ela passou a se apresentar em bares de Goiânia para garantir o sustento da casa. A mãe a acompanhava e pedia uma cerveja, que teria de durar até o fim da apresentação. Mais adiante, Marília passou a compor e, antes de incorporar as músicas próprias ao repertório, foi gravada por algumas duplas. Seu primeiro sucesso foi Infiel, de 2016.

Os temas de suas canções a consagraram como a ponta de lança de uma vertente no universo caipira chamado de “feminejo”, no qual as mulheres falam abertamente de seus problemas. Antes dela, Nalva Aguiar, Roberta Miranda e, mais recentemente, Paula Fernandes, desenvolveram suas carreiras num meio dominado por intérpretes do sexo masculino. Mas foi Marília quem marcou a verdadeira ascensão do subgênero.

Astros. O sertanejo Cristiano Araújo (acima, à esq.) morreu na estrada e o cantor de forró eletrônico Gabriel Diniz, em um acidente com um monomotor. (FOTO: Gildo Bento/Prefeitura de Mossoró/RN e Redes sociais)

Segundo pesquisa do Ibope/Kantar Media, Marília Mendonça tinha dez dos 25 principais atributos de uma artista querida pelo público. Os fãs a consideravam, entre outras coisas, carismática, humilde e engraçada, e achavam que ela transmitia confiança, tinha engajamento em causas sociais e era um “modelo a ser seguido”. Suas composições, de acordo com a Crowley, foram escutadas 312 mil vezes em 2020 e 158 mil vezes neste ano, quase o triplo de Maiara & Maraísa, as segundas colocadas.

Ela também era campeã de audiência no YouTube. Seu canal reúne 22 milhões de fãs e coube a ela a live com maior audiência de todos os tempos na plataforma: em abril de 2020, sua transmissão teve mais de 3,3 milhões de visualizações simultâneas.

Um público desse tamanho não passa, obviamente, despercebido pelas marcas. A live de Marília teve, entre os patrocinadores, a empresa de máquina de cartões Stone. Mas o rol de companhias que se associam ao gênero só faz crescer – na internet e fora dela. Casas Bahia, Ponto Frio, Elo, Caixa Econômica Federal, Magalu e Ambev são apenas algumas das grandes marcas que procuram se associar ao sertanejo. E há ainda centenas de empresas locais que fazem o mesmo, quando ­suas cidades vão receber esses artistas, os quais, ao enveredar Brasil adentro, acabam por revelar o próprio País.

Publicado na edição nº 1184 de CartaCapital, em 18 de novembro de 2021.

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