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A reinvenção da sociedade

Em um conjunto de breves ensaios, organizados em verbetes, Vladimir Safatle olha para o suposto progresso do mundo como algo a ser negado e redescoberto

No novo trabalho, o autor abandona o tom mais acadêmico – Imagem: Cecília Bastos/USP Imagens
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Vladimir Safatle é daqueles que se encontraram cedo. Aos 50 anos, é autor de mais de uma dezena de livros, alguns dos quais publicados no exterior, e organizador de outros tantos. Além disso, o professor titular de Filosofia da USP e candidato a deputado federal pelo PSOL nas eleições de 2022 tornou-se presença frequente na mídia brasileira, inclusive nesta CartaCapital, onde foi colunista.

Nesse processo, Safatle foi elaborando uma crítica política-filosófica singular. Eis que agora ele nos brinda com ­Alfabeto das Colisões: Filosofia Prática em Modo Crônico. O livro é composto de 24 verbetes em desordem alfabética. Embora seja concluído com a letra Z – “como termina o alfabeto” –, começa com a letra Q – “Quebrar”. São fragmentos que, juntos, formam um mosaico de “farrapos”, como diz o autor.

À diferença da linguagem mais acadêmica de outros trabalhos, a escrita aqui passeia com desenvoltura pelos temas mais diversos, como se estivesse em busca de um tipo diferente de aproximação, ou melhor, de “colisão” com o mundo estabelecido. Daí o caráter “prático” e “crônico” de suas reflexões. Se o acontecimento da nossa época é a crise, cabe à experiência filosófica “deixar ressoar fragmentos não por demissão, mas por confiança de que eles são pontos de uma constelação por vir”.

Como sustenta Safatle no verbete da letra F – “/Filosofia/” –, mais do que “esclarecer”, a filosofia que não se conforma com o afastamento do mundo precisa fazer um “esforço de decomposição”. Seu objetivo deve ser “fazer o pensamento sangrar”. É esse o papel do “intelectual inorgânico”: o seu engajamento é com o acontecimento que virá, com o ainda não existente. Se ele recua, é para denunciar as falsas emancipações e, assim, anunciar que outra se faz necessária.

Alfabeto das Colisões: Filosofia Prática em Modo Crônico. Vladimir Safatle. Ubu Editora (160 págs., 59,90 reais) – Compre na Amazon

São muitas as alusões a intelectuais e artistas, o que faz com que o texto, por vezes, assuma a forma de diálogo interior. A erudição pode dar a impressão de um hermetismo exagerado. Mas talvez seja esse o preço a se pagar quando se deseja confrontar os limites da linguagem diante da catástrofe potencial.

O resultado é um livro que, nos seus pequenos ensaios, almeja mostrar que a procura pelo sentido do mundo passa, antes de tudo, pelo reconhecimento de que a história foi despedaçada em seu curso hegemônico. É preciso, portanto, encarar o progresso a contrapelo, quer dizer, como aquilo que deve ser negado para, só assim, poder ser redescoberto sob outra forma.

O desafio é como levar adiante essa crítica ao progresso e ao iluminismo eurocêntrico – responsáveis tanto pela crise ecológica quanto pela crise psíquica contemporâneas – sem “abandonar o universalismo como horizonte de lutas”. Como construir, sem anular as “identidades” excluídas da história, o que ­Safatle chama de “universalismo concreto”, em oposição ao verdadeiro “identitarismo”, que é o “identitarismo branco”.

O ponto mais alto de Alfabeto das Colisões talvez seja justamente esse: a defesa de que um horizonte comum de emancipação não se descola da preocupação com as diferenças, e vice-versa. Safatle apenas resiste a transformar a diferença em norma, mesmo que “progressista”, uma vez que “a experiência de opressão não basta para a produção de experiências políticas com potencial emancipatório”.

Para isso, é preciso forjar alianças contra um mesmo adversário e, concomitantemente, a favor de outra sociedade, hoje ainda vista como impossível. No entanto, como se depreende da leitura do livro, é exatamente esta uma das funções críticas de um pensamento das colisões: elaborar uma “imagem possível de uma síntese impossível”. •

*Fabio Mascaro Querido é professor de Sociologia da Unicamp.


VITRINE

Por Ana Paula Sousa

Escreva Muito e Sem Medo: Uma História de Amor em Cartas (Record, 1.288 págs., 299,90 reais) passeia pela vida intelectual, o dia a dia e o amor entre Albert Camus e Maria Casarès. Nas cartas, as personalidades de ambos se revelam por meio de palavras forjadas pela paixão.

A biografia Joaquim Almeida (Companhia das Letras, 432 págs., 119,90 reais), de Luis Nicolay Parés, tem um subtítulo preciso: a história do africano traficado que se tornou traficante de africanos. A saga desse “preto africano rico e poderoso” espelha as perversidades da escravidão.

Os espíritos portugueses e italianos se entrecruzam em Para Isabel: Uma Mandala (Estação Liberdade, 144 págs., 56 reais), romance póstumo de Antonio Tabucchi (1943-2012), constituído, sobretudo, por reminiscências e obsessões. O livro tinha permanecido até agora inédito no Brasil.

Publicado na edição n° 1304 de CartaCapital, em 03 de abril de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A reinvenção da sociedade’

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