Cultura

A onda queer chega à MPB

As redes sociais têm fortalecido a presença de artistas gays, trans e drag queens no cenário musical

LGBTQIA+. Fillipe Catto, Gloria Groove e Johnny Hooker são alguns dos cantores a misturar arte e militância. Todos encontraram o sucesso por meio de caminhos paralelos aos das rádios – Imagem: Daguito Rodrigues, Redes sociais e Arthur Wolkovier
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No início de 2020, o gaúcho Filipe Catto era mais um dos muitos artistas brasileiros a criar lives para atenuar a sensação de desespero causada pela pandemia. Mas, certa noite, ao se preparar para uma delas, ele maquiou-se, colocou um batom vermelho e o que viu no espelho foi uma mulher.

“Foi o momento em que pensei: ‘Esta sou eu’. Porque sempre me vi como uma menina vestida de menino”, diz Catto, que adotou de vez o artigo feminino. É a Filipe Catto e se define como uma pessoa trans não binária. O termo refere-se a todos os que não pertencem a um único gênero.

A mutação foi estampada em O Nascimento de Vênus Tour, lançado em dezembro. O disco é o registro ao vivo da turnê de CATTO, seu último álbum de estúdio, de 2017, que alia canções de sua autoria, em parcerias com Moska e Fabio ­Pinczowski, com hits do pop, como Eva, versão de 1983 do Rádio Táxi para o sucesso de Giancarlo Bigazzi e Umberto Tozzi.

Filipe Catto faz parte de um movimento que tem crescido a olhos vistos no ­showbiz brasileiro: a presença da comunidade LGBTQIA+, que quase sempre une a criação artística à militância.

Há os homens gays, como Johnny Hooker e Chameleo, as trans Filipe Catto, Liniker, Assucena, Raquel Virgínia e Isis Broken, as drag queens Pabllo Vittar e Gloria Groove e a travesti Linn da Quebrada. Embora ignorados pelas rádios, esses artistas encontraram outros meios de divulgar seu trabalho e ganhar um público fiel.

O escritor João Silvério Trevisan classifica-os como geração da estética desmunhecada

“As redes sociais arrombaram as portas do preconceito e as minorias viraram o jogo”, diz Zé Pedro, proprietário da gravadora Joia Moderna. Muitas delas, aliás, ganharam espaço no chamado ­mainstream. Pabllo surgiu no programa de variedades Amor & Sexo, da Rede Globo, sete anos antes de iniciar uma carreira de sucesso, que incluirá até uma apresentação no Coachella 2022, badalado festival norte-americano de música pop.

Gloria Groove sagrou-se campeã em um show de calouros estilizado, também na Globo, em 2021, e na semana passada lançou o álbum Lady Leste. Linn está na atual edição do Big Brother. Liniker é protagonista de Manhãs de Setembro, série da Amazon Prime.

Renato Russo, um dos primeiros roqueiros a assumir sua bissexualidade, dizia que era muito difícil fazer isso em um país como o Brasil. E era verdade. Contavam-se nos dedos os artistas da MPB e do pop que expunham a orientação sexual.

As intérpretes do sexo feminino, por exemplo, adotavam uma aura de mistério até que, em 2005, a cantora Ana Carolina falou abertamente de sua bissexualidade. Os artistas do sexo masculino também costumavam ser discretos, ainda que houvesse alguém como Ney Matogrosso, um marco na liberação de gênero desde o Secos & Molhados.

O showbiz, hoje, é representado por aquilo que o escritor militante João Silvério Trevisan classifica como geração da “estética desmunhecada”. “Na música popular do início do século XXI, chegou-se a um notável projeto de superação. Do gay disfarçado e bem-comportado de antes eclodiu o fenômeno que se poderia chamar de trans-gay ou trans-viada, levando em conta uma expressividade assumidamente afetada e performática. Sua peculiaridade nasceu de uma escolha pela desmunhecação como estilo de compor, cantar e se expressar”, escreveu ele no livro Devassos no Paraíso.

Há de se considerar também, no contexto geral, alguns avanços do País. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, por unanimidade, a união estável de duas pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Sete anos depois, reconheceria que todo cidadão tem o direito de escolher como quer ser chamado. Ou seja, pessoas trans podem alterar nome e sexo no registro civil.

Essa luta fazia parte do cotidiano de Assucena e Raquel Virgínia, cantoras trans do grupo As Baías, que se desfez em setembro de 2021. “A gente entendeu a transgeneridade como luta”, diz Assucena. Hoje em carreira solo, ela lançou o single Parti do Alto, uma crítica ao patriarcado e ao machismo embalada por uma mistura da sonoridade eletrônica dos anos 1980 com samba. Para este ano, a cantora, que realizou homenagens a Gal Costa e Elis Regina, prepara um álbum de canções autorais.

O discurso é sempre acompanhado por uma sonoridade consistente. Assucena é uma intérprete delicada, que traz na voz referências à Gal dos anos 1970, ícone que também marca presença na música de Filipe­ ­Catto. Liniker bebe na fonte da soul ­music, que também se faz presente na música da Gloria ­Groove, ainda que ela seja um pouco mais identificada com o hip-hop.

Pabllo Vittar une música­ eletrônica a gêneros como lam­bada e forró. Pabllo é produzida por Rodrigo Gorky, que aprimora esse talento em sua outra descoberta, a trans Urias. Fúria, estreia da cantora e modelo, é uma compilação de baladas e canções para a pista, enriquecidas por sua voz de contralto. “A música chega às pessoas de maneira mais direta que um texto”, diz Gorky.

Nesse caldeirão, Lady Leste, de Gloria, surge como um trabalho ambicioso. Produzido pela dupla Pablo Bispo e Ruxell, o disco espelha a sonoridade da Zona Leste paulistana, onde os ritmos populares se casam – do rap ao sambão, do rock ao ­arrocha (produto típico da Bahia), passando pela música eletrônica.

“Sempre quis criar uma música que soasse pop, mas tivesse o cerne no ­underground. A gente criou então um ­underpop,

A militância pela diversidade vem acompanhada de uma grande mistura musical

que tem uma essência alternativa revestida por uma linguagem acessível”, explica Bispo. “O disco é dividido em quatro partes, cada uma falando da vida da Gloria: funk, música brasileira, hip-hop e rock”.

O pernambucano Johnny Hooker carrega nas composições informações musicais que vão do cancioneiro brega dos anos 1970 ao pop despudorado de ­Madonna. Seu novo trabalho, ainda sem nome, é baseado em Orgia – Os Diários de Tulio Carella, obra dos anos 1960 que conta história passada no Recife no período pré-ditadura. “É um álbum dividido em três atos, que começa na noite, passa pelo verão e acaba no fundo do poço que estamos vivendo, com essa sombra do fascismo que paira sobre nossas cabeças”, define.

A despeito do sucesso, a ascensão desses artistas ainda encontra resistência. “Vivemos num país conservador, que não consegue entender a pessoa trans. Quando ia ao banheiro, pedia para que minhas amigas me acompanhassem para não sofrer preconceito”, conta Assucena. “Perdi as contas do quanto fui xingada na rua. E sei que o lugar que ocupo é muito pequeno perto do que eu poderia ser”, diz Catto.

A sensação de que, se não fossem ­LGBTQIA+, poderiam ter mais sucesso é comum a quase todos. “Tenho de me esforçar em dobro para provar a minha qualidade e lançar música muito boa para chegar perto de onde eu deveria estar”, reflete Urias, que em muitas faixas do álbum de estreia trata do preconceito. “Artistas do LGBTQIA+ têm hoje um espaço melhor, mas que é fruto de muita luta. Me sinto como se tivessem jogado a gente numa ilha deserta e tivéssemos de nadar para chegar até a praia”, define Gorky.

“Minha geração, assim como as anteriores, carregou a vontade de brigar por essa mudança estrutural, ainda mais depois do milagre de termos vivido governos minimamente progressistas”, afirma Hooker. “Mas não me iludo. Sei que, como Caetano diz, ‘aqui tudo parece que era ainda construção e já é ruína’.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1196 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A onda queer chega à MPB”

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