Cultura

A (nossa) vida de Adèle

Mais do que um conflito de gênero, “Azul é a Cor Mais Quente” é a história do contraste entre mundos, idades e referências de amores adolescentes. Por Matheus Pichonelli

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A primeira pergunta lançada ao fim de Azul é a Cor Mais Quente é se o filme de Abdellatif Kechiche, vencedor da Palma de Ouro em Cannes e em cartaz em São Paulo, despertaria tantas paixões caso se tratasse da história de amor entre um garoto e uma garota. A sala estava lotada, o público, inquieto, e, muito provavelmente, vacinado (ou atraído) para as cenas de amor erótico interpretado pelas atrizes Adele Exarchopoulos e Léa Seydoux.

Mas, se me fizessem essa pergunta após as três horas de filme, responderia que sim: o drama se sustenta com ou sem a sequência – e não, a história não se limita à descrição de um romance homoerótico.

O drama pode ser dividido basicamente em três partes. A primeira mostra a rotina de Adèle, uma jovem comum prestes a virar a última esquina da adolescência. O foco da câmera são as trivialidades ao seu entorno: como ela dorme, como mastiga, como ri, como prende os cabelos, como anda em direção ao ponto de ônibus, como contém o riso, como responde às provocações das amigas e como troca de calça à medida que se percebe desejada. Tudo soa muito real (e isso, para alguns, é confundido com mera obscenidade). Acuada, Adèle parece uma espectadora de um mundo de regras próprias que ainda não a fisgou: à exceção do livro La Vie de Marianne, de Pierre de Marivaux, que ela lê a caminho da escola, não sabemos o que a encanta ao seu redor. Consequentemente, ela parece não saber dos próprios encantos, e se assusta quando alguém tenta alertá-la do que é capaz.

A saída desse mundo de posições definidas, e portanto indiferentes para ela, é uma espécie de despertar de um sono leve. No início do filme, durante uma aula de literatura, o professor questiona os alunos o que eles sentem quando esbarram com alguém interessante pela rua e seguem caminhando como se nada tivesse acontecido. Eles sentem que algo (ou alguém) se perdeu ou algo se ganhou diante do encontro/desencontro?

O debate, aparentemente despretensioso, tem início na sala de aula e acerta Adèle na primeira esquina. Ao longo do filme, ela terá muitos encontros, mas dois são definitivos. O primeiro, com um amigo de escola apaixonado por ela. Trata-se de um rapaz um pouco mais velho, boa pinta, gentil, fã de música, mas não de literatura. Ela conta para ele toda a paixão pela leitura e ele devolve dizendo que jamais terminou um livro na vida. O diálogo é o prenúncio de um desencontro.

Pouco depois, ela esbarra com Emma pela rua, troca olhares e, dessa vez, sente que algo mudou. Ganhou ou perdeu? Não se sabe. Mas tudo parece virar de cabeça para baixo quando Emma, artista plástica que já deixou a faculdade, pega em suas mãos e ensina a ela tudo sobre a vida, a arte, a literatura e a filosofia. Adèle, uma estudante de colegial recém-formada que dá aulas no maternal, se descobre aluna diante de um mundo que se abre.

Há, neste ponto, uma mudança brusca até demais: a presença de Emma em sua vida cria, nessa transição, um conflito isolado com os colegas, que não aceitam a sexualidade latente da amiga que se revela e sofre a primeira rejeição. Esse conflito desaparece sem deixar pistas: de repente, Adèle tem uma namorada, de quem frequenta a casa, e passa a militar em passeatas gays. Não sabemos o quanto precisou preparar as canelas para enfrentar a fúria do mundo que começava a ruir e deixar para trás.

Esse agigantamento do mundo, mais complexo que o anterior, é o que transforma a trama em uma história universal. Conforme adere ao mundo de Emma, a jovem Adèle descobre que nada sabe: fica sem palavras diante dos pais e amigos intelectuais e artistas da namorada. Vê-se, assim, em um conflito não de gênero, mas de mundos, idades e referências. Emma não é rejeitada pela mãe, pelo padrasto ou pelo pai por conta da sua orientação sexual. Naquela casa os novos tempos, mais sofisticados, mais sensíveis, mais permissivos e menos presos a tabus, parecem ter chegado há tempos. Essa sofisticação fica clara no contraste dos pratos elaborados em cada casa: os pais de Emma oferecem vinho branco e ostras encontradas em mares distantes à namorada aceita da filha; os pais de Adèle servem, sempre e em qualquer ocasião, uma velha macarronada com molho à bolonhesa – eles não entendem o que está acontecendo e, como boas topeiras, fiam-se em perguntas de séculos passados acerca de namorados, planos financeiros, carreira e frases-feitas diante da artista à mesa (entre elas o famigerado “artista bom é artista morto”).

A insegurança ao deixar a velha macarronada dos pais e adentrar em um mundo de texturas desconhecidas leva ao terceiro estágio de sua vida. É quando Adèle conhece o ciúme, a posse, o esgotamento, o erro, a angústia. Mais do que amante, Adèle é uma espécie de espectadora da namorada mais velha, mais segura, mais bem relacionada e mais ciente das próprias ambições. Aquilo, para ela, é desafiador e, ao mesmo tempo, cruel. É o princípio de um segundo desencontro. Um desencontro forçoso que ecoa como uma sentença: “o primeiro amor é (sempre) um doce desespero” (leia mais AQUI).

Em um dos diálogos entre elas, Emma tenta explicar em poucas linhas a ideia central do pensamento de Jean-Paul Sartre: “a existência precede a essência”. Adèle custa a entender o que aquilo significa até que a namorada sentencia: “Isso libertou toda uma geração ao mostrar que cada um é responsável pelo que faz”.

A lição, como o refrão de uma música antiga, Adèle sabe de cor; só lhe resta aprender. Mal sabe ela que o amor que liberta é o mesmo que pune. Esse processo de descobrimento é o que permite ao cineasta criar uma história de amor universal: triste, bela e intensa como tudo o que ficou na adolescência e provocará estragos para o resto da (nossa) vida.

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