Cultura

Doce desespero

Minhas tardes com Camila Pintaga e Marilyn Monroe

A atriz Michelle William no papel (e na banheira) de Marilyn Monroe
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Foram dez anos sem se ver. Num encontro de turmas, desses facilitados pelo Facebook, com chácara, churrasco e piscina, notou que ela usava aliança na mão esquerda e esperava um filho. Ele acabava de encerrar um relacionamento de anos que morrera de maduro.

Foi doido por ela por muito, muito tempo: talvez entre os 14 e 17 anos. (Nessa idade, um ano vale por sete, como aos cães). Foram tempos de encontros, cartas, trocas de olhares e confissões. Mas o distanciamento era inevitável: as meninas amadurecem mais cedo, são sempre mais vivas e prontas para serem mulheres enquanto os meninos ainda engatinham no corredor da escola com soquinhos, pontapés e bolinhas de papel (alguns ainda erguem as cuecas dos colegas até o pescoço e saem correndo).

Com os anos, tornou-se um sujeito respeitável, mas ela… bem, ela andava longe do esplendores colegiais – é o que sentenciaria mais tarde o meu amigo. Ainda assim, ao vê-la, confessou ter tido a sensação de voltar a ter novamente 14 anos. No reencontro, passou o tempo todo gaguejante, hesitante, fraco, inseguro, sem-graça e com vontade de sair correndo; enquanto ela parecia ainda reinar absoluta no alto de um pedestal inescapável.

As ironias: o primeiro amor é, de fato, um doce desespero. Quem afirma não sou eu nem meu amigo, mas Sybil Thorndike (a atriz britânica interpretada por Judi Dench em Sete Dias com Marilyn) ao testemunhar o encanto e ansiedade do jovem Colin Clark quando fica a poucos metros de Marilyn Monroe.

Até aí não há grandes novidades: se havia um dom maior que todos os outros em Marilyn era o de ser notada e provocar suspiros por onde passasse. Podia estar em meio a trezentas pessoas, mas era a ela que se endereçavam e se concentravam os olhares. Anonimato para ela era uma palavra simplesmente incompatível. Esse dom raro é o caminho para a destruição, como escreveu Gabriel Garcia Marquez sobre sua Remédios Buendía, a personagem de Cem Anos de Solidão que provocava um “insuportável estado de íntima calamidade” à sua passagem”. Mas Marilyn, diferentemente de Remédios, era consciente “da aura inquietante em que se movimentava”.

No filme de Simon Curtis, ela é observada de perto sem perder a aura. Levada a Londres para filmar O Príncipe Encantado, é pajeada e paparicada o tempo todo. Ainda assim, é invadida por uma crise de confiança e solidão – algo que artistas como ela parecem sempre imunes. Assustada com o ritmo, o lugar, a forma metódica e rude do diretor britânico Laurence Olivier, Marilyn se comporta como um bicho do mato, a quem todos devem manipular para obter o resultado desejado, com remédios para dormir, remédios para acordar e remédios (muitos) para se acalmar.

Nesse turbilhão, ela se apega ao terceiro assistente de direção, o inglês Colin (Eddie Redmayne), o único da equipe aparentemente capaz de olhar em seus olhos sem mentir. O encontro improvável é uma tragédia anunciada.

À medida que a conhece de perto (na primeira vez, sem maquiagem), Colin, que mais tarde ganharia fama escrevendo suas memórias daqueles tempos (o personagem real morreu em 2002), amplia o encanto sobre a excêntrica celebridade americana. Caminha, assim, descalço sobre uma lâmina de espada: Marilyn, ao mesmo tempo que atrai, também ofusca, assusta, consome e expulsa quem estiver ao seu redor – algo que Michelle Williams leva à tela com impressionante semelhança. (Prova disso é que o escritor Arthur Miller, ex-marido de Marilyn, após semanas sendo acordado de madrugada com homens à sua janela fazendo serenata à mulher, suportou o turbilhão por apenas três semanas).

O filme mostra a distância entre a mulher que Marilyn gostaria de ser e aquela que ganhou fama. É um conflito permanente, reforçado pelos apelos do jovem Colin, uma das poucas faces reais em meio a tanta pompa. Mas deixar de ser a estrela que todos esperam era ainda mais difícil do que ser Marilyn Monroe. O peso da escolha é conhecido por todos: a partir daquele filme, foram praticamente 15 anos a mil, colecionando sucessos, tombos e mais fama. E espalhando corações espatifados pelas calçadas.

Pobre Colin, que, enquanto escrevo, segue estático, encantado e destruído ao assistir no set de filmagens a mulher que foi sua por breves e inesquecíveis dias.

Todos fomos Colin em algum momento da vida, pensava eu à saída do cinema. A frase de Thorndike (“o primeiro amor é um doce desespero”) ainda ecoava quando, à saída da sessão, esbarrei no cartaz do filme de Beto Brant e Renato Ciasca, Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios, baseado no romance homônimo de Marçal Aquino.

É um dos títulos mais atraentes da literatura brasileira contemporânea – há quem o repita frequentemente ao ser assaltado por uma bela imagem nas ruas pelo caminho: “eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios…”

Não deu outra: entrei na segunda sessão. Parecia um contraste. Acabava de sair de uma Londres fria e aparentemente sem microorganismos vivos e fui direto para o sul do Pará, estado quente e chuvoso onde Camila Pitanga, interpretando a misteriosa Lavínia (a mulher de um pastor, ex-prostituta que se encanta por um forasteiro), faria Marilyn parecer uma tia vitoriana no Brasil.

Sai o jovem Colin e entra Cauby (Gustavo Machado), o fotógrafo que vai à Amazônia conhecer o seu país mais profundo e se perde ao encontrar a dúbia Lavínia, outro turbilhão da série “doces desesperos”.

O cartaz torna o título auto-explicativo. Qualquer um receberia as piores notícias daqueles lábios. Mas o filme, como o livro, deixa aberta a compreensão de outra obra de Marçal Aquino: O Amor e Outros Objetos Pontiagudos.

No filme, Brant e Ciasca reproduzem o que já haviam desenhado em Cão Sem Dono: o encontro e a perdição, a solidão e a espera, a entrega e a adoração – tudo rasgadamente pontiagudo, regado a suor, lassidão, devaneios, desejos e medo.

Eu Receberia tem como mérito traduzir na tela a aflição de uma tragédia prestes a explodir toda vez que o coração salta à boca.

A violência do entorno (o desmate, a pistolagem, as ameaças, as traições, a fé e a violência que movem montanhas e provocam feridas) é o pano de fundo de um Brasil real.

Mas não faz arranhão perto dos amores doces e desesperados que pulsam nos lugares mais inóspitos – seja um set de filmagens em Londres, uma casa encravada na selva ou num velho encontro de turmas de colegial.

Foram dez anos sem se ver. Num encontro de turmas, desses facilitados pelo Facebook, com chácara, churrasco e piscina, notou que ela usava aliança na mão esquerda e esperava um filho. Ele acabava de encerrar um relacionamento de anos que morrera de maduro.

Foi doido por ela por muito, muito tempo: talvez entre os 14 e 17 anos. (Nessa idade, um ano vale por sete, como aos cães). Foram tempos de encontros, cartas, trocas de olhares e confissões. Mas o distanciamento era inevitável: as meninas amadurecem mais cedo, são sempre mais vivas e prontas para serem mulheres enquanto os meninos ainda engatinham no corredor da escola com soquinhos, pontapés e bolinhas de papel (alguns ainda erguem as cuecas dos colegas até o pescoço e saem correndo).

Com os anos, tornou-se um sujeito respeitável, mas ela… bem, ela andava longe do esplendores colegiais – é o que sentenciaria mais tarde o meu amigo. Ainda assim, ao vê-la, confessou ter tido a sensação de voltar a ter novamente 14 anos. No reencontro, passou o tempo todo gaguejante, hesitante, fraco, inseguro, sem-graça e com vontade de sair correndo; enquanto ela parecia ainda reinar absoluta no alto de um pedestal inescapável.

As ironias: o primeiro amor é, de fato, um doce desespero. Quem afirma não sou eu nem meu amigo, mas Sybil Thorndike (a atriz britânica interpretada por Judi Dench em Sete Dias com Marilyn) ao testemunhar o encanto e ansiedade do jovem Colin Clark quando fica a poucos metros de Marilyn Monroe.

Até aí não há grandes novidades: se havia um dom maior que todos os outros em Marilyn era o de ser notada e provocar suspiros por onde passasse. Podia estar em meio a trezentas pessoas, mas era a ela que se endereçavam e se concentravam os olhares. Anonimato para ela era uma palavra simplesmente incompatível. Esse dom raro é o caminho para a destruição, como escreveu Gabriel Garcia Marquez sobre sua Remédios Buendía, a personagem de Cem Anos de Solidão que provocava um “insuportável estado de íntima calamidade” à sua passagem”. Mas Marilyn, diferentemente de Remédios, era consciente “da aura inquietante em que se movimentava”.

No filme de Simon Curtis, ela é observada de perto sem perder a aura. Levada a Londres para filmar O Príncipe Encantado, é pajeada e paparicada o tempo todo. Ainda assim, é invadida por uma crise de confiança e solidão – algo que artistas como ela parecem sempre imunes. Assustada com o ritmo, o lugar, a forma metódica e rude do diretor britânico Laurence Olivier, Marilyn se comporta como um bicho do mato, a quem todos devem manipular para obter o resultado desejado, com remédios para dormir, remédios para acordar e remédios (muitos) para se acalmar.

Nesse turbilhão, ela se apega ao terceiro assistente de direção, o inglês Colin (Eddie Redmayne), o único da equipe aparentemente capaz de olhar em seus olhos sem mentir. O encontro improvável é uma tragédia anunciada.

À medida que a conhece de perto (na primeira vez, sem maquiagem), Colin, que mais tarde ganharia fama escrevendo suas memórias daqueles tempos (o personagem real morreu em 2002), amplia o encanto sobre a excêntrica celebridade americana. Caminha, assim, descalço sobre uma lâmina de espada: Marilyn, ao mesmo tempo que atrai, também ofusca, assusta, consome e expulsa quem estiver ao seu redor – algo que Michelle Williams leva à tela com impressionante semelhança. (Prova disso é que o escritor Arthur Miller, ex-marido de Marilyn, após semanas sendo acordado de madrugada com homens à sua janela fazendo serenata à mulher, suportou o turbilhão por apenas três semanas).

O filme mostra a distância entre a mulher que Marilyn gostaria de ser e aquela que ganhou fama. É um conflito permanente, reforçado pelos apelos do jovem Colin, uma das poucas faces reais em meio a tanta pompa. Mas deixar de ser a estrela que todos esperam era ainda mais difícil do que ser Marilyn Monroe. O peso da escolha é conhecido por todos: a partir daquele filme, foram praticamente 15 anos a mil, colecionando sucessos, tombos e mais fama. E espalhando corações espatifados pelas calçadas.

Pobre Colin, que, enquanto escrevo, segue estático, encantado e destruído ao assistir no set de filmagens a mulher que foi sua por breves e inesquecíveis dias.

Todos fomos Colin em algum momento da vida, pensava eu à saída do cinema. A frase de Thorndike (“o primeiro amor é um doce desespero”) ainda ecoava quando, à saída da sessão, esbarrei no cartaz do filme de Beto Brant e Renato Ciasca, Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios, baseado no romance homônimo de Marçal Aquino.

É um dos títulos mais atraentes da literatura brasileira contemporânea – há quem o repita frequentemente ao ser assaltado por uma bela imagem nas ruas pelo caminho: “eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios…”

Não deu outra: entrei na segunda sessão. Parecia um contraste. Acabava de sair de uma Londres fria e aparentemente sem microorganismos vivos e fui direto para o sul do Pará, estado quente e chuvoso onde Camila Pitanga, interpretando a misteriosa Lavínia (a mulher de um pastor, ex-prostituta que se encanta por um forasteiro), faria Marilyn parecer uma tia vitoriana no Brasil.

Sai o jovem Colin e entra Cauby (Gustavo Machado), o fotógrafo que vai à Amazônia conhecer o seu país mais profundo e se perde ao encontrar a dúbia Lavínia, outro turbilhão da série “doces desesperos”.

O cartaz torna o título auto-explicativo. Qualquer um receberia as piores notícias daqueles lábios. Mas o filme, como o livro, deixa aberta a compreensão de outra obra de Marçal Aquino: O Amor e Outros Objetos Pontiagudos.

No filme, Brant e Ciasca reproduzem o que já haviam desenhado em Cão Sem Dono: o encontro e a perdição, a solidão e a espera, a entrega e a adoração – tudo rasgadamente pontiagudo, regado a suor, lassidão, devaneios, desejos e medo.

Eu Receberia tem como mérito traduzir na tela a aflição de uma tragédia prestes a explodir toda vez que o coração salta à boca.

A violência do entorno (o desmate, a pistolagem, as ameaças, as traições, a fé e a violência que movem montanhas e provocam feridas) é o pano de fundo de um Brasil real.

Mas não faz arranhão perto dos amores doces e desesperados que pulsam nos lugares mais inóspitos – seja um set de filmagens em Londres, uma casa encravada na selva ou num velho encontro de turmas de colegial.

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