Cultura

A mulher do cachorrinho

Os mistérios que podem haver por detrás de uma fotografia em preto e branco

O meu pai tinha a mania de fotografar tudo e, caprichosamente, legendar cada um dos flagrantes
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A maior herança que já recebi foi um baú medindo um metro de comprimento por sessenta centímetros de altura e cinquenta de profundidade, cheio, transbordando de fotografias, a maioria em preto e branco. Herança dos meus pais.

O velho vivia com uma Rolleiflex dependurada no pescoço numa época em que ninguém sonhava com smartphones ou câmeras digitais. Ele era do tempo do filme de rolo, de mandar revelar as fotografias e esperar cinco dias úteis pra ver o resultado.

O meu pai tinha a mania de fotografar tudo e, caprichosamente, legendar cada um dos flagrantes. Abrindo o baú, além de um leve cheiro de antiquário, a gente encontra uma foto com a seguinte legenda: “Tarde de sol do dia 2 de março de 1961. Um leão descansa em sua jaula, depois de um lauto almoço, no zoológico de Belo Horizonte”.

Ou uma outra com os dizeres: “Depois de uns goles, Aurino, Jesus e Mateus descansam num posto de gasolina a caminho de Conceição do Mato Dentro, onde instalaremos mais uma estação do Quinto Distrito de Meteorologia”.

O problema maior são as fotos sem legendas e a falta que sinto do meu pai para me explicar direitinho quem eram aquelas pessoas, por exemplo, experimentando água sulfurosa numa fonte no parque em São Lourenço.

Dos parentes, que ele fotografava quase todos os domingos na casa do meu avô, lembro-me de todos. Mas tem fotos que vão ficar aqui pra sempre sem o reconhecimento devido.

Há alguns anos, caiu nas minhas mãos uma edição da Rolling Stone americana que me deixou fascinado. Os repórteres da revista foram atrás de uma sorridente aeromoça da Pan Am, que aparecia sorridente e abrindo caminho pros quatro Beatles que desciam a escada para pisar, pela primeira vez, na terra do Tio Sam.

A idosa senhora lembrou-se perfeitamente daquele dia, daquela cena. Recontou a história com detalhes e meus olhos brilhavam em cada parágrafo.

Essa semana, quando comecei a ler o livro As Sete vidas de Nelson Motta, essa fascinação voltou logo nas primeira páginas, quando Nelsinho contou a história da famosa fotografia que ilustra a capa.

Ela foi feita em setembro de 1967, na cobertura do apartamento de Vinicius de Moraes, na rua Diamantina, no Jardim Botânico, depois de uma reunião com os poderosos chefões da gravadora Philips, que foram ali para discutir a decadência das marchinhas de carnaval e buscar uma solução para não deixar que elas morressem.

Na fotografia em preto e branco, além de Nelsinho, os bambas da música popular brasileira: Chico Buarque, Luiz Bonfá, Braguinha, Zé Kéti, Sidney Miller, Dori Caymmi, Paulinho da Viola, Caetano Veloso, Torquato Neto, Tom Jobim, Edu Logo, Francis Hime, Luiz Eça, Linda Batista, mais nove pessoas e uma que ninguém sabe quem é até hoje.

Reprodução da capa do livro de Nelson MottaEla está com um vestido florido e um cachorrinho preto no colo. Nelsinho a identificou como “a mulher do cachorrinho” e falou rapidamente sobre o mistério.

Passei o livro inteiro indo e vindo até a capa intrigado com a tal mulher do cachorrinho. Quem seria ela? Uma secretária da Phillips? Uma estenodatilógrafa? Uma cantora que sumiu do mapa? Uma paquera de alguém, provavelmente Vinicius? Ninguém sabe. Virou a mulher do cachorrinho.

Se fiquei intrigado com ela, imagine o meu tormento o dia em que pensei em identificar um a um, todos aqueles que saíram às ruas no dia 26 de junho de 1968, na passeata dos cem mil? Se eu conseguisse identificar ao menos os dois que estão segurando o cartaz “Abaixo a Ditadura, Povo no Poder”, já estava bom demais.

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