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A literatura entre tuítes e posts

Em Impostora, Rebecca F. Kuang satiriza o conceito de “lugar de fala” e mira o lado obscuro do mercado editorial

A literatura entre tuítes e posts
A literatura entre tuítes e posts
Best-seller. F. Kuang, nascida na China e radicada nos EUA, despontou aos 19 anos – Imagem: José Camacho
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Se fosse uma estreante, não teria ousado escrever este livro”, diz Rebecca F. Kuang em sua casa em Boston, nos Estados Unidos. Ela sequer teria conseguido. Seu novo romance, Impostora: Yellowface (recém-lançado no Brasil), só poderia ter sido escrito por uma autora familiarizada com as peculiaridades da indústria editorial: as políticas mesquinhas, a má-fé e as boas intenções que dão ridiculamente errado.

O suspense é protagonizado por uma escritora branca que reivindica como sendo seu o texto de uma autora chinesa morta. O enredo satiriza o lado obscuro da indústria: o modo como os autores são embalados e comercializados; como os best-sellers são, muitas vezes, escolhidos e promovidos com dinheiro bem antes de chegarem às prateleiras; e como autores marginalizados e funcionários são ignorados, menosprezados e mal pagos.

Impostora: Yellowface. R.F. Kuang. Tradução: Yonghui Qio. Intrínseca (352 págs.,59,90 reais) – Compre na Amazon

F. Kuang tornou-se conhecida pela trilogia A Guerra da Papoula (2018), premiada série de ficção que explora a seguinte ideia: e se Mao fosse uma adolescente? Ambientada num país que lembra a China medieval, a obra conta a história de uma ambiciosa garota camponesa que entra na academia militar mais prestigiosa do país. Muitos acontecimentos na trilogia são inspirados na história chinesa do século XX.

Veio depois o best-seller Babel (2022), sucesso disparado no BookTok, que acompanha um grupo de estudantes de Letras na Universidade de Oxford, na era vitoriana, arrastado para a primeira guerra do ópio. Há magia, intriga e há a Inglaterra imperial, grandiosa e perturbadora.

Impostora foi escrito em 2021, durante o confinamento pandêmico, e, ao contrário das fantasias históricas anteriores, é surpreendentemente atual: inclui leitores sensíveis, ataques em massa no X (Twitter) e ciúmes profissionais disfarçados de crítica social.

“Fico entediada muito facilmente”, diz Kuang, com uma fileira de livros na prateleira atrás dela, ao lado do que parece ser um gato de brinquedo. “Nunca escreverei um projeto do mesmo gênero duas vezes, porque há muitas formas de contar histórias que quero experimentar.”

Pouco antes de concluir Impostora, ela havia enviado à editora o manuscrito de Babel, que descreve como um “romance de formação dickensiano, robusto e meditativo”. Em busca de um projeto drasticamente diferente, ela se decidiu por uma sátira “ágil” para a era das redes sociais. Os dramas do mundo literário se encaixaram à perfeição nessa ideia.

“A indústria editorial, como muitas no entretenimento, é cheia de dramas”, diz. “Acho que os escritores são especialmente bons em pegar pequenos escândalos e ampliá-los de modo desproporcional.”

À época, a indústria lidava com as questões raciais levantadas pelo movimento Vidas Negras Importam e havia discussões online sobre quais histórias estavam sendo contadas e quem estava sendo promovido. June Hayward, a protagonista de Impostora, sente ciúmes da colega Athena Liu, uma “bela mulher de cor, educada em Yale, internacional, sexualmente ambígua”, cuja educação em internatos britânicos lhe deu “um sotaque estrangeiro elegante e indefinível”.

Fantasia. O pai da autora foi um dos estudantes a ocupar a Praça da Paz Celestial, em Pequim, em 1989. As histórias de sua família e a passagem por Oxford serviram de inspiração para Babel, romance que virou sucesso a partir do BookTok – Imagem: Arquivo/AP

“As editoras escolhem um vencedor”, pensa June. Athena é a escolhida, mas morre repentinamente, e June descobre um manuscrito deixado por ela sobre o Corpo de Trabalhadores Chineses que apoiou a Grã-Bretanha na Primeira Guerra Mundial. O manuscrito é incrivelmente bom, e June resolve aprimorá-lo e apresentá-lo como seu.

O livro lança June ao estrelato literário, mas os críticos passam a debater seu direito de contar uma história que não diz respeito nem a sua raça nem a sua experiência de vida. Em Impostora, essa pergunta deságua em reações cada vez mais bizarras, e qualquer razoabilidade desaparece sob uma montanha de tuítes.

A visão de Kuang é, no entanto, mais clara: “A mim, parece que preocupações sobre quem tem permissão para contar as histórias, ou quem tem o direito, ou quem é qualificado são perguntas erradas a se fazer”. O interessante, diz, é entender o modo como os autores abordam as histórias: “Eles lidam de forma crítica com os estereótipos que já existem no gênero? Qual é a relação deles com as pessoas representadas? O trabalho faz algo interessante? É bom?”

Para F. Kuang, embora o conceito de “lugar de fala” busque apoiar autores sub-representados, trata-se de mais uma forma de controle: “É uma espada de dois gumes contra escritores marginalizados, uma vez que os limita a escrever apenas sobre suas experiências marginalizadas”.

Sua personagem, Athena, uma “asiático-americana que pensa ser representante de todos”, trata de trabalhadores pobres, mas é rica e escreve numa máquina de escrever personalizada em seu lindo apartamento em Nova York.

F. Kuang dá crédito a seus mentores por ensiná-la a “sobreviver no mundo ­online”, e a sua família por incentivar seu amor precoce por contar histórias. Nascida em Guangzhou, no sul da China, de pais que imigraram para Dallas, no Texas, quando tinha 4 anos, ela cresceu em uma “família muito literária”.

Seu pai, um leitor voraz, imprimia cópias de romances de domínio público, grampeava as páginas e lia com ela. “Nos sentávamos para ler Orgulho e ­Preconceito juntos. Foi assim que aprendi inglês.” Aos 11 anos, foi apresentada a A ­Revolução dos Bichos 1984, de George Orwell.

A narração de histórias, diz, começou como uma forma de “assimilar, aprender inglês” e entender seu novo lar. Mas ela sempre se sentiu mais atraída por livros de fantasia. Para ela, divisões por gênero, como “ficção especulativa” e “ficção literária”, são rótulos artificiais. “Você não encontra os livros de Kazuo ­Ishiguro na seção de fantasia de ficção científica, mas O Gigante Enterrado é fantasia, e Não Me Abandone Jamais é ficção científica distópica.”

“Não falamos o suficiente sobre o que o mundo literário contemporâneo faz com a saúde mental dos escritores”

Kuang começou a escrever a trilogia A Guerra da Papoula aos 19 anos, durante um ano de folga dos estudos em História Chinesa na Universidade de ­Georgetown. Ela estava em Pequim, dando aulas durante o dia, e buscava uma maneira de passar o tempo à noite. Naquele ano, começou a conhecer melhor a história de sua família: seus avós viveram a segunda guerra sino-japonesa e seu pai foi um estudante universitário que protestou na Praça da Paz Celestial, em Pequim, em junho de 1989, e viu seus amigos morrerem.

Hoje, Kuang é doutoranda em Literatura Chinesa na Universidade Yale. Anteriormente, foi aluna de mestrado em Cambridge e depois em Oxford – mas os estudos foram interrompidos pela pandemia. “Nunca tive uma sensação de conclusão com Oxford, e acho que por isso escrevi a respeito incessantemente”, diz, sobre Babel.

Embora ela duvidasse que o livro pudesse ser popular, ele foi rapidamente adotado pelo TikTok, particularmente pelos entusiastas da “academia sombria”, uma subcultura da internet que celebra meias até o joelho e túnicas pretas, torres góticas e leitura de Keats à luz de velas.

Em Impostora, June relembra a época em que escrever era algo alegre e livre, e não dominado por competição, fofoca e autopromoção. “Não falamos o suficiente sobre o que o mundo literário contemporâneo faz com a saúde mental dos escritores”, diz. “A qualquer momento, você pode entrar na internet e descobrir o que milhares de pessoas estão dizendo sobre você e seu trabalho.”

Há, ainda, a agitação incessante em torno das comparações sobre as classificações do Goodreads; do orçamento de marketing reservado pela editora; e das postagens sobre os livros no Instagram. Diante de tudo isso, esperar que os autores permaneçam “completamente imperturbáveis e com os pés no chão” é, segundo a jovem autora, “ridículo”. •


Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1328 de CartaCapital, em 18 de setembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A literatura entre tuítes e posts’

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