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Massacre da praça da Paz Celestial na China ecoa “lembranças vivas de violências repetidas”, 33 anos depois

A comemoração do massacre de Tian An Men foi proibida em Hong Kong há dois anos, oficialmente por razões sanitárias

Visitantes andam pela praça Tiananmen, em Pequim, durante o XVIII Congresso do PCC em 5 de novembro. Foto: Wang Zhao / AFP
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O que restou da “Primavera de Pequim” depois que a memória coletiva foi sequestrada por anos de censura, após o massacre de 1989 na praça da Paz Celestial? Trinta e três anos depois da tragédia, celebrados neste sábado (4), a revolta parece ter retornado aos campi estudantis nesta primavera de 2022, segundo o correspondente da RFI na China, Stéphane Lagarde.

Imagens de jovens reunidos e cantando slogans nas universidades de Pequim e de Tianjin circularam nas redes sociais nas últimas semanas. Para Marie Holzman, escritora e jornalista especializada em sinologia, presidente do coletivo Solidariedade China, passados 33 anos do massacre da Praça da Paz Celestial (“Tian An Men”), “as lembranças permanecem vivas porque o sofrimento infligido à população chinesa e as feridas abertas são repetitivos e múltiplos”, disse, em entrevista à RFI.

Ela cita como outro exemplo de violência contra os chineses, o recente confinamento imposto aos moradores de Xangai, para frear o aumento de casos da Covid-19, que “provocou dramas indiviuais e foi, aparentemente, inútil”.

“Recordemos, principalmente, as manifestações pró-democracia reprimidas com violência em Hong Kong, em 2019, que sufocaram o desejo de liberdade dos moradores da cidade”, destaca a especialista francesa. “A esperança de democracia e liberdade que havia em Hong Kong foi praticamente destruída”, constata. Segundo ela, mesmo se a China mudou muito ao longo desses 33 anos, “o regime não mudou e continua sendo uma ditadura, um governo violento”.

Holzman incita à reflexão sobre o que ocorre atualmente com a invasão russa na Ucrânia, uma agressão “que pode ser analisada sob o prisma do que aconteceu em Hong Kong”. “A Rússia também não tolerou a liberdade que havia na Ucrânia, assim como a China não suportou o desejo de liberdade em Hong Kong”, lamenta a pesquisadora.

Memória apagada da juventude chinesa

A juventude chinesa, no entanto, parece estar mais revoltada com as medidas restritivas contra a pandemia, como relata o correspontende da RFI em Pequim. Segundo ele, trata-se de uma juventude irritada com as barreiras, restrições sanitárias e a burocracia, “mas quando perguntamos a três estudantes o que significa para eles o 4 de junho, a resposta é hesitante”.

“Sei que há um festival no dia 4 de junho, mas não sei qual deles”, diz um deles. “É o Festival do Barco do Dragão?”, indaga um outro. “Não, não é algo vermelho (referência ao Partido Comunista)?”, pergunta o terceiro. “É isso, é o dia da liberdade!”, exclama. Na verdade, o  4 de junho de 1989 não foi exatamente o “dia da liberdade”, mas o dia da intervenção do Exército chinês contra a revolta popular em Pequim, mas também em 300 cidades da China.

Esses alunos não eram nascidos há 33 anos, mas um professor aposentado, entrevistado pela reportagem na capital chinesa, já o era. Sua memória, no entanto, também encontra problemas para recordar o passado. “Bem, não falamos sobre isso há anos. Foi quando os estudantes foram para as ruas? Na época, eu vivia na província de Henan, não me lembro”, diz, hesitante.

“Lagostas, lagostas frescas para levar”, grita um proprietário de restaurante, forçado a vender comida na rua, com a pandemia. No anticlímax da Covid-19, aqueles que foram autorizados a sair se retraem imediatamente à simples menção de uma memória sufocada por mais de três décadas de censura.

Celebrações proibidas em Hong Kong

A comemoração do massacre de Tian An Men foi proibida em Hong Kong há dois anos, oficialmente por razões sanitárias. Todos os organizadores das vigílias de 4 de junho estão atualmente na prisão. Uma parte do Victoria Park, local histórico e tradicional dessas manifestações, foi fechado e colocado sob forte vigilância desde sexta-feira (3). Segundo a correspondente da RFI em Hong Kong, Florence de Changy, o contexto mudou drasticamente em dois anos.

O advento da Lei de Segurança Nacional e as restrições sanitárias da pandemia continuam a limitar as manifestações públicas. Além dessas proibições, as autoridades policiais advertiram que mesmo ir “sozinho” para Causeway Bay neste sábado (4) poderia resultar em prisão por assembleia ilegal. Pequim até avisou os diplomatas em Hong Kong para não sublinhar a data, como alguns fizeram no ano passado, acendendo pequenas velas nas janelas de seus escritórios. Nem mesmo isso já não é mais tolerado por Pequim.

Assim, os habitantes de Hong Kong recorrem a subterfúgios: vestir-se de branco em vez de preto para indicar seu luto ou apenas dar um “passeio” pelo parque. Alguns compraram ingressos de cinema para fornecer um álibi em caso de prisão.

Em uma das principais universidades de Hong Kong, estudantes espalharam pelo campus miniaturas impressas em 3D da famosa Deusa da Democracia, o símbolo do movimento estudantil chinês de 1989. Trata-se de um verdadeiro ato de ousadia política nos tempos atuais, uma vez que a polícia busca apagar da memória todos os vestígios do trágico 4 de junho de 1989, algo que os habitantes de Hong Kong nutriram admiravelmente bem nas últimas três décadas.

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