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A incômoda herança digital

Nossos perfis e bens virtuais estão em expansão, mas o que acontece com eles após a nossa morte?

Posteridade nas plataformas. Tamara Kneese, que pesquisa a forma como as pessoas vivenciam a tecnologia, aponta as responsabilidades das empresas do Vale do Silício sobre esse tema tabu – Imagem: iStockphoto e Lydia Daniller
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Tamara Kneese estuda o modo como as pessoas vivenciam a tecnologia. Ela é pes­qui­sadora sênior do Data & Society Research Institute (Instituto de Pesquisa de Dados e Sociedade), organização sem fins lucrativos com sede em Nova York.

Em seu novo livro, Death Glitch (O Problema da Morte), ela examina o que acontece com nossas propriedades digitais depois que morremos e argumenta que, para o bem de toda a nossa posteridade digital, as empresas de tecnologia precisam melhorar a maneira como lidam com esse fato em suas plataformas.

The Observer: O destino póstumo dos nossos bens digitais parece um assunto mórbido. Por que ele é importante?
Tamara Kneese: Poucas pessoas pensam na herança digital, mas os nossos bens digitais estão se acumulando. Existem razões pragmáticas e sentimentais pelas quais seus entes queridos, após a sua morte, poderão se importar com eles. E a preservação também é importante para a memória histórica e coletiva. O problema é que não existe um mecanismo claro para transferir os bens digitais de uma geração para outra. Nossas posses digitais estão se perdendo no éter – não só porque os nossos entes queridos talvez não saibam das contas que temos, mas porque as plataformas não foram concebidas para pensar na morte.

TO: O que nossos legados digitais podem incluir?
TK: Blogs, contas de e-mail e perfis de redes sociais são exemplos óbvios. Há também todas as fotos e playlists de músicas guardadas na nuvem, aplicativos de pagamento por celular e avatares digitais. Fora todos os dados coletados pelos nossos telefones e outros objetos inteligentes.

TO: Onde, especificamente, as empresas de tecnologia estão falhando?
TK: Algo que muitos acham desconcertante é quando recebem avisos automáticos de plataformas de redes sociais sugerindo amizade com alguém que morreu – seja essa pessoa sua conhecida ou não. Algumas plataformas, como X (ex-Twitter) e TikTok, não têm nenhum mecanismo para tratar um perfil como sendo de uma pessoa morta. Outras, como o LinkedIn, têm esse mecanismo, mas a maioria das pessoas não o conhece ou não o utiliza. Além disso, não se sabe por quanto tempo qualquer plataforma sobreviverá. O fato de a morte não ter sido incorporada às plataformas é sinal de um tipo particular de privilégio: essas empresas foram criadas por pessoas que não precisaram pensar muito sobre a confusão da existência humana.

Essas empresas foram criadas por pessoas que não precisaram pensar muito sobre a confusão da existência humana

TO: O Facebook, maior site de rede social, possui um modo de memorialização mais conhecido para perfis, que permite que a pessoa seja lembrada pelos enlutados. Isso não resolve o problema?
TK: O Facebook trabalhou muito em torno da ideia de como lidar com a morte desde que, após o tiroteio na Universidade Virginia Tech, em 2007, se tornou um local de luto em massa. E merece algum crédito por isso. Mas, como está tentando implementar uma espécie de serviço fúnebre em grande escala, é uma solução “tamanho único”. Não há lugar para diferentes contextos culturais ou individualidades. Os parentes precisam navegar em um mar de burocracia, no qual lutam para que um perfil seja transformado em memorial ou excluído. Um recurso mais recente do Facebook – nomear um contato para ser o guardião do seu perfil – não é popular.

TO: O acúmulo de mortos traz consequências para as plataformas? Há previsões de que, até 2070, o número de usuários mortos no Facebook ultrapassará o de usuários vivos…
TK: Existe um valor comercial nos memoriais de usuários mortos em um site: ajuda a fazer com que a família e os amigos voltem. Mas o valor comercial e talvez até sentimental de um cemitério digital desaparece a certa altura. Manter para sempre os dados de todos os usuários mortos não é rentável, além de ter um impacto ambiental. O armazenamento depende de centros de dados e servidores que consomem muita energia. O custo é parte da razão pela qual as empresas começaram, discretamente, a remover contas inativas.

TO: Gerenciar e manter os dados dos mortos é um ato de amor, mas também exige trabalho por parte dos sobreviventes, não?
TK: No caso de um perfil no Facebook, o mecanismo integrado de transformação da página em memorial pode tornar tudo um pouco mais fácil. Mas, se for um blog pessoal, muitas vezes o ente querido terá de pagar taxas de nome de domínio e hospedagem na web para mantê-lo, e até manter relacionamentos com leitores. Outro trabalho pode envolver a atua­lização de formatos e a movimentação de conteúdo de um disco rígido para outro ou entre provedores de nuvem porque um deles faliu. Cartas em papel ou fotografias físicas também precisam de cuidados, mas não no mesmo grau.

TO: Graças à IA generativa, ­chatbots e deepfakes estão sendo apresentados como passos em direção à imortalidade digital. As empresas prometem treinar chatbots antes da nossa morte ou substituir entes queridos. Existem planos para assistentes digitais que manifestam vozes falsas de parentes falecidos. Poderia esta ser uma maneira barata de todos alcançarmos uma aparência de vida eterna?
TK: Diante da enorme quantidade de dados que as pessoas colecionam sobre si, a ideia de clone digital parece possível. Mas eu não compararia essa forma de preservação com a imortalidade. Apenas no nível prático: quem vai manter esses sistemas ao longo do tempo? Há também repercussões éticas e emocionais a serem consideradas. Há um problema de consentimento para se criarem versões de IA de ­pessoas mortas. E legar uma versão chatbot sua pode dificultar as coisas para um ente querido que está tentando seguir em frente.

Dispositivo. Em 2007, após o tiroteio na Universidade Virginia Tech, o Facebook tornou-se um local de luto em massa e teve de aprender a lidar com a morte – Imagem: iStockphoto e Scott Olson/Getty Images/AFP

TO: Você argumenta que objetos inteligentes podem gerar heranças estranhas. Como assim?
TK: Os objetos inteligentes costumam ser programados de acordo com as especificações e preferências de uma pessoa. Herdá-los pode, portanto, ser um pouco como se você estivesse sendo assombrado. Entrevistei pessoas que cuidavam de diferentes tipos de casas inteligentes de pessoas que morreram ou se mudaram. E o que acontecia, com o tempo, é que os sistemas perfeitamente planejados começavam a falhar cada vez mais. Um sistema de alarme desenvolvia um bug estranho, os horários das luzes ficavam descoordenados e a reprogramação de persianas permanecia incompreensível. Tornava-se uma luta por controle.

TO: Startups de planejamento de propriedade digital prometem organizar os bens online das pessoas e fazer planos para descarte ou herança quando elas morrerem. Até onde devemos confiar nelas?
TK: Essas empresas começaram a aparecer no fim dos anos 2000, e muitas tinham um viés lúdico. Por exemplo, você podia escrever e-mails para serem enviados após sua morte, para dar a última palavra em uma discussão, ou revelar segredos nunca falados. Muitas das primeiras empresas fecharam as portas, embora novas continuem a substituí-las. Eu seria cautelosa ao me inscrever em qualquer serviço que prometa gerenciar algo no futuro.

TO: Você não pode simplesmente passar uma conta para um ente querido, deixando sua senha?
TK: Legalmente falando, você não deveria. Uma plataforma cria um contrato com uma pessoa e, quando ela morre, o contrato também morre. Além disso, as senhas não são confiáveis – as pessoas as alteram – e, no caso das finanças, isso pode acionar sistemas de detecção de fraude que compliquem a vida de um parente ou amigo.

TO: Como você planeja lidar com seus restos digitais?
TK: Ainda não criei um plano imobiliá­rio digital para mim, mas há um guia simples com uma abordagem que aprecio. Sugere começar escrevendo uma lista de seus pertences digitais e depois pensar se deseja excluí-los ou preservá-los, tendo em mente o significado para você e qual poderia ter para as pessoas que está deixando para trás. •


Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1281 de CartaCapital, em 18 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A incômoda herança digital’

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