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A genealogia do mundo cão

A trajetória do Homem do Sapato Branco ajuda a desvendar a face mais escabrosa da televisão brasileira

História da TV. Jacinto Figueira Júnior (à esq.), que morreu em 2005, no ostracismo, tem a trajetória recuperada pelo jornalista Mauricio Stycer – Imagem: Renato Parada e Redes Sociais
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Eu lia muito Nietzsche e Schopenhauer (…) E eles falavam muito sobre os homens que usavam sapato branco: médicos, enfermeiros, dentistas. E eles achavam que eram homens sérios, homens realmente que demonstravam honestidade, higiene.” A explicação de Jacinto Figueira Júnior sobre a origem do nome que deu a si mesmo, diz muito sobre o feitio do apresentador e ex-deputado retratado em O Homem do Sapato Branco – A Vida do Inventor Do Mundo Cão na Televisão Brasileira.

Escrito pelo jornalista Mauricio Stycer, o perfil biográfico do pioneiro de um tipo de programa que tem lugar cativo na TV aberta brasileira, é o retrato de um homem cuja trajetória estava esmaecida pelo tempo e pela escassez de estudos sobre a face mais escabrosa da televisão brasileira.

“Cheguei a ter dúvida se eu devia fazer um livro sobre ele, se ele merecia um livro, se eu não estaria contribuindo para enaltecer uma figura a respeito da qual tenho muitas críticas”, diz, logo no início da entrevista a CartaCapital, Stycer. “Mas prevaleceu a ideia de que ele faz parte da história da televisão e que é importante conhecer essa história porque, nitidamente, existe uma continuidade do que ele fez.”

O próprio Jacinto, sem disfarçar a mágoa com o que considerava uma falta de reconhecimento, dizia serem Gil Gomes, Afanásio Jazadji e Ratinho seus imitadores. Stycer cita, no livro, programas como O Povo na TV e aqueles apresentados por Márcia Goldschmidt e Celso Russomanno como alguns dos que tinham a digital de O Homem do Sapato Branco.

Quando questionado sobre essas marcas nos dias atuais, diz: “Tanto Cidade Alerta quanto Brasil Urgente, duas das maiores audiências da Record e da Band, são derivados desse tipo de programa que o Jacinto fazia, ainda que sejam menos grosseiros”.

Entre janeiro de 1962 e março de 1969, Jacinto Júnior produziu e/ou apresentou três programas de televisão em três emissoras. Esses programas, descreve o autor, inauguraram um modelo que se provaria perene: a mistura de jornalismo e entretenimento, a espetacularização da violência, a exploração da miséria, o julgamento sumário para a plateia e a encenação de cenas supostamente reais.

Antes de Jacinto, a ideia de “mundo cão”, segundo o autor, ainda não tinha ocupado a então recém-nascida televisão brasileira. O livro lembra que quando a TV Tupi foi inaugurada, em 1950, havia 200 aparelhos no País – todos nas casas da elite. Em 1960, quando Chateaubriand inaugurou a TV Cultura, o número de aparelhos de televisão estava em quase 600 mil.

Aquela TV Cultura, faz questão de explicar Stycer, não tinha nada a ver com a Cultura que viria depois e que ainda existe. Tratava-se de uma emissora que “pouca gente levava a sério, repleta de problemas e limitações”. E foi essa emissora que abriu as portas para Jacinto.

Filho de imigrantes portugueses, Jacinto cresceu no bairro do Pari, vizinho do Brás, em São Paulo, em uma família com razoáveis condições financeiras. Antes de entrar para a televisão, como contato publicitário da TV Cultura, trabalhou como corretor de imóveis e apresentou-se como cantor.

O Homem do Sapato Branco – a Vida Do Inventor Do Mundo Cão Na Televisão Brasileira. Mauricio Stycer. Todavia (224 págs., 74,90 reais)

O programa que o tornou conhecido foi Câmeras Indiscretas, no qual começou como produtor. Ali, exibiu um transplante de córnea, conquistou grande audiência e deu o salto para virar o homem do sapato branco.

O livro, ao seguir de forma detalhada os passos de Jacinto, acaba por recontar um pouco da história da TV, em especial em seus primórdios. Empresas como Diários Associados, Tupi, uma Globo ainda em formação e, na segunda fase de Jacinto, a TVS de Silvio Santos funcionam, em certa medida, como fio narrativo. Silvio foi, por sinal, uma figura importante na vida de Jacinto. Foi ele quem o pôs de volta na tela após uma década passada no ostracismo.

É que Jacinto, no auge da popularidade, elegeu-se deputado estadual, em 1966, e acabou cassado em 13 de março de 1969, sob o AI-5. Como deputado, Jacinto não apresentou projetos, ausentou-se com frequência da Assembleia – abonando faltas indevidamente – e fez assistencialismo.

Em uma das passagens mais curiosas do livro, Stycer relata o inacreditável tumulto gerado pelo anúncio de que distribuiria presentes de Natal na sede da Globo, na região central de São Paulo. O episódio, segundo o autor, contribuiu para a cassação injustificada – ou justificada por moralismo e implicância – do apresentador.

Embora a cassação fosse exclusi­vamente parlamentar, Jacinto, depois dela, ficou isolado. O retorno à tela se daria pelas mãos de Silvio Santos, que relançou O Homem do Sapato ao inaugurar o SBT, em 1981, e depois o ­convidou também a fazer parte do Aqui Agora.

Nessa segunda fase, a carreira de Jacinto já não tem o fôlego de antes. A essa altura, não só havia mais concorrência como os anunciantes passavam a se afastar daquilo que flertava de forma mais escancarada com a aberração e o sensacionalismo.

A pressão sobre esse tipo de programação, avalia Stycer, parte até hoje de três frentes principais: a justiça, que age em alguns casos; a sociedade, por meio da mídia e da crítica da TV; e as marcas, que podem ter prejuízos de imagem ao se associar a programas que violam os direitos humanos ou exploram a miséria.

“A censura, à qual o próprio Jacinto foi submetido, é inaceitável, mas algum tipo de regulação para esse tipo de programa poderia haver”, reflete, com o olhar no presente, o autor. “Esse assunto é um tabu que deveria ser enfrentado.” •

Publicado na edição n° 1265 de CartaCapital, em 28 de junho de 2023.

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