Cultura

A fotografia contra-ataca

As violências cometidas contra os povos originários e suas terras geram, como resposta, a produção de imagens de uma realidade nem sempre visível

Propósito. Ricardo Stuckert e Araquém Alcântara acreditam nas fotos como um arma de denúncia e um instrumento de transformação - Imagem: Araquém Alcântara e Ricardo Stuckert
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Enquanto episódios como o do assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips, na Amazônia, ou o da morte do guarani kaiowá Vito Fernandes, em Mato Grosso do Sul, mobilizam a opinião pública, museus, centros culturais, editoras e produtores de cinema abrem um espaço crescente para obras que retratam os povos originários. Essas imagens testemunham tanto as lutas quanto a relação dos indígenas com a água, os animais, sua espiritualidade e seu senso estético.

A última Bienal de São Paulo deu destaque a artistas indígenas como Daiara Tukano e Jaider Esbell ­(1979-2021), este também curador da mostra ­

Moquém_Surarî, que reuniu no Museu de Arte Moderna (MAM-SP) trabalhos de 34 artistas de diferentes etnias. No mês passado, foi inaugurado, também na capital paulista, o Museu das Culturas Indígenas.

Em meio à urgência de representação, a fotografia é uma das manifestações que têm ficado mais evidentes. A exposição Amazônia, de Sebastião Salgado, tem lotado o Sesc Pompeia e chegou na semana passada ao Museu do Amanhã, no Rio.

“Busco mostrar a importância da floresta e porque a protegemos”, diz Kamikia Kisêdjê

Outro que, assim como Salgado, conhece bem a peleja dos povos indígenas é Araquém Alcântara. Seu primeiro contato com os guaranis ñandeva, na Serra do Itatins, no litoral sul de São Paulo, aconteceu em 1973. Ele diz, em seu site, encarar a fotografia como “poderosa arma de conhecimento” e “instrumento de transformação social”. Em entrevista, reafirma a crença: “Minha busca é por tocar as pessoas. Ninguém pode defender a Amazônia sem se aproximar dela”.

Alcântara possui dois projetos de livros sobre a Serra do Itatins e se prepara para percorrer pela primeira vez o Xingu, que concentra as cinco Terras Indígenas mais devastadas do perímetro amazônico. “Se eu conseguir desempoeirar uma única consciência que seja, já vou me sentir reenergizado”, diz, para logo em seguida fazer uma ponderação. “A fotografia é mais testemunho, desabafo, anseio de salvar. Precisa aliar-se a outras linguagens para ser de fato transformadora.”

Talvez seja essa empreitada a que Ricardo Stuckert se dedica no livro Povos Originários: Guerreiros do Tempo (Tordesilhas), que intercala cliques de dez etnias com textos de sociólogos, antropólogos e membros das comunidades retratadas.

Conhecido, sobretudo, pelo trabalho como fotógrafo oficial da Presidência nos anos Lula, o brasiliense retratou indígenas pela primeira vez em 1997, para uma reportagem sobre os yanomâmis de Nazaré (AM). Lá, conheceu Penha Góes, uma jovem de 22 anos que não esqueceu mais: “Eu nunca tinha fotografado uma pessoa com um olhar tão profundo, tão marcante. Era parecido com o de uma onça. Aquela imagem ficou na minha memória”.

A imagem de Penha ficou de tal forma colada em sua retina que, 18 anos mais tarde, lá estava Stuckert de novo diante dos olhos felinos da agora mãe de seis filhos, enfermeira formada e tradutora ­yanomâmi no Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), em São Gabriel da Cachoeira (AM). Esse reencontro o estimulou a prestar um tributo aos povos indígenas. A fotografia, para Stuckert, é uma ferramenta de comunicação e denúncia. “As fotos devem falar por si, mas minhas ideias e minha visão de mundo estão ali”, diz.

Estéticas. O documentário Gyuri (à esq.) recupera a trajetória de Claudia Andujar, defensora dos yanomâmis. Kisêdjê retrata o cotidiano de sua aldeia, em Mato Grosso – Imagem: Rumos/Itaú Cultural e Kamikia Kisendje

Da epifania de 25 anos atrás para cá, o que mudou, diz Stuckert, foi o tipo de engajamento de jovens lideranças indígenas, que voltaram às suas aldeias depois de estudar em universidades. “Eles têm um olhar aguçado para a importância da imagem, de dar visibilidade à luta”, afirma. “Tem muito artista, cineasta e fotógrafo indígena. O momento é deles.”

A projeção que Kamikia Kisêdjê vem ganhando que o diga. Formado pela ONG Vídeo nas Aldeias, Kisêdjê começou a fotografar em 2008. Seu “material didático” eram os registros de Araquém Alcântara.

Em 2015, ele foi a Paris cobrir a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas como fotógrafo oficial do cacique Raoni. Flagrou o momento em que o líder caiapó entregou ao ex-presidente francês François Hollande uma carta pedindo apoio contra a Medida Provisória que previa a instalação de usinas hidrelétricas em terras indígenas. O clique abriu portas para colaborações com instituições como o Greenpeace, o Fundo Mundial para a Natureza e o Rainforest Fund.

“Quero que essas fotos sejam usadas como material didático em aulas de educação ambiental”, diz Kisêdjê, que vive na aldeia Khikatxi (MT). No auge da pandemia, ele foi um dos profissionais a cederem imagens visando a arrecadação de fundos para a Articulação de Povos Indígenas do Brasil. “Busco mostrar a importância da floresta e porque os povos indígenas a protegem. Isso ajuda as pessoas que nunca pisaram aqui a conhecerem de perto a região e quererem protegê-la.”

Kisêdjê já deu oficinas de foto e vídeo nas cinco regiões do País e até no Paraguai. Ele conta que, além de aprenderem sobre enquadramento e outros conceitos técnicos, os alunos indígenas buscam entender como podem aprimorar o uso das imagens – com o auxílio de drones e seus olhos eletrônicos voadores – para monitorar invasores, desmatamentos e queimadas.

“Tem muito artista, cineasta e fotógrafo indígena. O momento é deles”, diz Stuckert

O fotógrafo exibirá em outubro, em São Paulo, a vertente de seu trabalho ligada à denúncia do impacto da derrubada de árvores e do plantio de soja em terras indígenas. Será na exposição Xingu, no Instituto Moreira Salles (IMS), que, há algumas semanas, promoveu um seminário sobre a representação dos povos indígenas em acervos históricos. Duas das mesas, disponíveis no canal do IMS no YouTube, tratam da necessidade de restituir imagens a seus protagonistas e de incentivar sua reapropriação por criadores autóctones.

Foi também o IMS que, em 2018, acolheu uma retrospectiva da obra de Claudia ­Andujar, autora de algumas das imagens mais emblemáticas de indígenas brasileiros. A partir de 1971, a fotógrafa suíça de origem romena registrou o cotidiano e os rituais dos yanomâmis, e, especialmente, os efeitos deletérios da invasão de suas terras. A ampla circulação e repercussão de suas fotos no Brasil e no exterior foi considerada uma peça importante para a demarcação oficial da Terra Yanomâmi, em 1992.

O documentário Gyuri, que estreou este mês nos cinemas, relembra a chegada de Claudia ao Brasil, fugindo do nazismo, e retrata seu ativismo, com ou sem a câmera na mão. Ela, que está com 91 anos, foi, em 1978, uma das fundadoras da Comissão Pro-Yanomâmi.

“Nas décadas de 1970 e 1980, em resposta a um projeto do governo militar (a construção da Perimetral Norte) que afirmava não existirem povos naquela região, a Claudia deu a ver o contrário”, diz Mariana Lacerda, diretora do Gyuri. “É isso que o cinema ou a fotografia, quando bem usados, podem fazer: mostrar aquilo que não está obviamente visível, mas existe, deve continuar existindo e pede passagem. São ferramentas políticas contundentes, que podem mudar a forma como sentimos as coisas.” •


A ARTE YANOMÂMI NO MASP

Nossa Terra-Floresta será a primeira individual de Joseca, habitante da mesma aldeia de Davi Kopenawa

por Ana Paula Sousa

Florestas e xamãs. A mostra reúne 93 desenhos – Imagem: Joseca

Neste ano em que se completam 30 anos da homologação da Terra Yanomâmi, o Museu de Arte de São Paulo (Masp) vai expor em suas paredes 93 desenhos de Joseca Yanomâmi. Nascido em 1971, no Rio Uxi u, Joseca vive na comunidade Watoriki (AM), a mesma de Davi Kopenawa.

Joseca já teve sua obra exposta em instituições ­como a Fundação Cartier, em Paris, Wellcome ­Foundation, em Londres, e o Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo. A mostra Nossa Terra-Floresta, a ser aberta no dia 29 de julho, é sua primeira individual.

Antes de dedicar-se à arte, Joseca era uma liderança importante em sua aldeia. Na década de 1990, organizou a primeira escola yanomâmi, na qual se ensinava também português e, no início dos anos 2000, ele começou a trabalhar na área de saúde.

Foi nesse período que passou a fazer, apenas a partir de elementos da natureza que o cerca, ­esculturas. Conforme a ­relação com a arte foi se aprofundando, descobriu o desenho.

“A natureza vai muito além daquilo que a gente consegue entender racionalmente”, diz David Ribeiro, curador da exposição ao lado de Adriano Pedrosa. “A floresta que ele retrata não é apenas a floresta verde. Ela é cheia de clareiras, brilhos, penas coloridas de araras. E cheia de espíritos.”

Ribeiro é historiador e, em sua pesquisa de doutorado, estudou as relações entre indígenas e quilombolas com o patrimônio brasileiro. Dez anos atrás, trabalhou como educador no Museu Afro. Seu contato com Joseca só se deu, porém, a partir da doação dos desenhos agora exibidos, feita pela colecionadora Clarice Tavares.

A aquisição insere-se no projeto de diversificação do acervo do Masp – composto, por anos, quase que exclusivamente de artistas homens e brancos. Com os artistas de outras origens chegam outras estéticas.

“O Joseca dialoga com a estética ocidental, de histórias em quadrinhos, revistas e jornais, ao mesmo tempo que usa uma estética não reconhecida pelo olhar não indígena, que pode causar algum estranhamento”, define Ribeiro. “O conjunto apresenta um traço delicado, em que não se vê perturbação. Ele aprendeu a desenhar observando a natureza, os pássaros e teve, como inspiração, os cantos xamânicos.”

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1218 DE CARTACAPITAL, EM 27 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A fotografia contra-ataca “

 

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