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A excentricidade como herança

O Bom Mal evidencia o diálogo da autora argentina Samanta Schweblin com a literatura fantástica latino-americana

A excentricidade como herança
A excentricidade como herança
Clima. Os contos trazem atmosferas repletas de tensão em contextos improváveis – Imagem: Alejandra Lopez
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Samanta Schweblin é capaz, como poucos, de criar atmosferas repletas de tensão. Entretanto, suas narrativas vão além do mero suspense. Nos contos de O Bom Mal, a autora argentina consegue criar personagens muito críveis em situações um tanto improváveis.

Não por acaso, a epígrafe que abre o conjunto de seis contos é de sua conterrânea Silvina Ocampo (1903–1993): “O estranho é sempre mais verdadeiro”.

É inevitável comparar as duas escritoras. Ambas são, aliás, habilidosas inventoras de crianças esquisitas e um bocado assustadoras.

Em um dos contos de Pássaros na Boca (Editora Fósforo, 2022), por exemplo, Samanta descreve uma adolescente que fica visivelmente mais saudável quando se alimenta de passarinhos vivos – para desespero dos pais.

Silvina, por sua vez, cria histórias cheias de crianças um pouco malvadas em As Convidadas (Companhia das Letras, 2022) e A Fúria (Companhia das Letras, 2019).

Voltemos, porém, aos personagens verossímeis do novo livro de Samanta. Uma delas é a mãe deprimida do primeiro conto, “Bem-vinda à comunidade”.

Após interromper uma tentativa de suicídio, ela volta para casa sem que seu desespero seja notado pelas filhas e pelo marido, ocupados com a chegada de um coelho a ser cuidado pelas meninas. É um vizinho, dono de um comportamento perturbador, que quebra a ordem do universo doméstico e impõe um clima de ameaça à vizinhança.

Nas histórias criadas pela autora, os personagens ou vivem sob a iminência de algo terrível ou sofreram um trauma, como aquele relatado no conto “Um animal fabuloso”, no qual o enigma gira em torno do encontro com um cavalo e um acidente envolvendo um menino. A aura de perigo repete-se nos também excelentes “A mulher de Atlántida” e “O Todo-Poderoso faz uma visita”.

O Bom Mal. Samanta Schweblin. Tradução: Livia Deorsola. Editora Fósforo (160 págs., 79,90 reais)

A exceção, no todo, é “William na janela”, narrativa sem o peso das demais. Mesmo com os elementos fantásticos presentes, Samanta apela ao tema desgastado de nomes que escrevem sobre suas bolsas de incentivo à literatura em algum país estrangeiro – neste caso, a China.

Há, por outro lado, uma história que vale o livro inteiro – quase como se os demais contos fossem um bônus: “O olho na garganta”. O que faz dele um conto incontornável na literatura contemporânea é seu diálogo com a tradição fantástica latino-americana. Ao mesmo tempo que dialoga com o tempo cíclico e o duplo de Jorge Luis Borges (1899–1986), ­Samanta cria algo muito singular.

Na história, um menino engole uma bateria que, alojada na garganta, o impede de falar para sempre. O protagonista do conto é, no entanto, seu pai, um homem atormentado por uma dupla culpa: pelo acidente e por ter esquecido o filho em um posto de gasolina no cansativo trajeto da viagem para Buenos Aires.

“E nesta mesma noite, por fim deitado em sua cama, prestes a dormir, o meu pai se sobressalta quando toca o telefone da sala, ele levanta para atender e ouve pela primeira vez esse silêncio frio e escuro que tanto o perturbará por anos”, conta o narrador. Quem narra é o filho sem voz.

Seja nos romances – como­ Kentukis (Fósforo, 2021), que traz bichinhos de pelúcia espiões, e Distância de Resgate (Fósforo, 2024), protagonizado por uma mãe apavorada com a contaminação da filha –, seja nas narrativas breves, Samanta Schweblin guarda sempre um quê de excentricidade. E também de originalidade, como confirma O Bom Mal. •


VITRINE

Por Ana Paula Sousa

Kitchen (Estação Liberdade, 176 págs., 56 reais), de Banana Yoshimoto, ganha nova tradução, do japonês. O volume traz ­duas narrativas curtas, Kitchen e Moonlight Shadow, envoltas pela atmosfera do luto. Na primeira, uma jovem se refaz, após a perda da avó, por meio da culinária.

Ursa Corregidora, personagem-título de Corregidora (176 págs., 74,90 reais), é uma negra, cantora de blues, cuja trajetória tem tanto de particular quanto de coletiva, espelhando o que era ser uma mulher negra, nos anos 1940, no Kentucky. O romance, de 1975, foi escrito por Gayl Jones.

Além de ser um explorador, o inglês ­Ranulph Fiennes é um profícuo escritor. Não é de espantar, portanto, que tenha partido dele Shackleton: Uma Biografia (Companhia das Letras, 456 págs., 109,90 reais), relato de uma arriscada e aventuresca expedição à Antártica, no início do século XX.

Publicado na edição n° 1378 de CartaCapital, em 10 de setembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A excentricidade como herança’

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