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A dramatização da história real

Uma nova onda de romances recupera o período ditatorial para refletir sobre o passado e o presente brasileiros

Ficção. A narrativa de Arrigo, o trabalho mais recente do conjunto, percorre um século das lutas das esquerdas do País – Imagem: Arquivo Nacional
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Ao contrário do que se diz frequentemente, a literatura não apenas reproduz, como produz o real. Ela, a seu modo, dá forma a personagens e acontecimentos que, embora inspirados na realidade, assumem uma feição própria, embalada por uma dinâmica narrativa específica. Mais do que refletir o visível, ela torna visível.

Não é difícil entender, portanto, por que a literatura se tornou um modo privilegiado de figuração dos períodos ditatoriais. É como se, apesar de indispensáveis, os trabalhos sociológicos ou historiográficos, pelas limitações do ofício, não conseguissem adentrar em terrenos que somente a ficção seria capaz de acessar.

Afinal de contas, nada melhor para captar não apenas a brutalidade econômica, política e social, mas também a barbárie psíquica e existencial promovida pelas ditaduras, do que o recurso a elementos ficcionais, com a dramatização de episódios reais.

Nesse sentido, talvez não seja por acaso que os últimos anos tenham sido marcados por uma nova leva de romances, cujas histórias revivem os traumas da ditadura instaurada no Brasil em 1964. E foi justamente quando o passado voltou a assombrar o presente, com a ascensão de uma extrema-direita saudosista dos anos de chumbo, que a ficção sobre o período ganhou outro lugar de destaque.

São os casos, para ficar em alguns exemplos, de Cabo de Guerra, de Ivone ­Benedetti, publicado em 2016, Um Dia Esta Noite Acaba, de Roberto Elisabetsky, lançado em 2022, e Arrigo, de Marcelo ­Ridenti, editado em 2023, todos pela Boitempo.

Os romances são diferentes entre si, tanto no arranjo formal quanto no conteúdo lapidado. O livro de Benedetti coloca o foco narrativo em um personagem anônimo, baiano radicado em São Paulo que, nos anos 1970, após flertar com a militância de esquerda e ser preso, acaba migrando para o outro lado do “cabo de guerra”, tornando-se informante do regime – um “cachorro”, na linguagem dos próprios repressores.

O ponto de partida de Roberto ­Elisabetsky é o dia 25 de janeiro de 1984, data do grande comício pelas Diretas na Praça da Sé, em São Paulo. É deste presente – desta noite que um dia acaba –, no qual o novo emerge junto às ruínas ainda atuais do velho, que a narrativa vai alternando a trajetória da família protagonista e a história recente do próprio Brasil, a partir do fim da década de 1950.

Os sentidos da barbárie psíquica e existencial escapam às obras sociológicas e historiográficas

Arrigo, romance de estreia do soció­logo Marcelo Ridenti, reconstitui, por meio das rememorações do protagonista que dá título ao livro, mais de um século de lutas das esquerdas brasileiras – tema também das pesquisas sociológicas do autor. Nesse percurso, nem poderia ser diferente, a ditadura militar aparece como período central.

Estão lá as divergências da esquerda após a derrota de 1964 e o recrudescimento do regime a partir de 1968, a repressão, as torturas, descritas com realismo atordoante, os justiçamentos, em suma, um cenário de muita violência, angústia, mas também de resistência ao que parecia incontornável. Arrigo, a personagem, apresenta-se assim como uma espécie de alegoria de uma utopia que, apesar de tudo, permanece ativa em meio aos escombros da história política brasileira.

Em comum, pode-se identificar em todos esses “romances históricos” o mesmo vaivém entre presente e passado, ou melhor, a mesma alternância entre temporalidades que, apesar de distintas, são enlaçadas em uma mesma perspectiva narrativa. Em todos eles, além do mais, é sempre o presente (o deles e o nosso) o horizonte de fundo à luz do qual os tempos passados são reavivados em ficções cujo realismo do conteúdo não elimina, muito ao contrário, a inventividade da forma.

Toda forma é forma de alguma coisa, ou seja, de algum conteúdo. E é nesse sentido que ela é “objetiva”, como diria o crítico alemão Theodor Adorno, uma vez que, explícita ou implicitamente, remete à história social da qual é parte. Por isso mesmo, a reorganização temporal que se observa na estratégica narrativa dos romances não deixa de ser expressão de uma época em que a fragmentação das esperanças nos obriga a repensar o passado, assim como os seus vínculos com o presente.

Não deve surpreender, então, o tom um tanto melancólico das histórias. Mesmo porque, como sabemos, se foram poucas as vitórias, muitas foram as derrotas. Sem falar nas sequelas políticas e subjetivas deixadas em seus rastros. Mas não se trata de resignação passiva, e sim de uma melancolia ativa, de quem sabe que a restituição das possibilidades no presente passa pela rememoração das tormentas do passado. Sem a memória do que já foi, isto é, dos vencidos que tombaram na contramão do progresso dos vencedores, é a própria imaginação de outro futuro possível que se encontra bloqueada.

A dimensão ficcional serve, assim, como uma forma capaz de restabelecer os laços entre passado e presente, ou seja, de tornar o passado presente. Ao revelar as nuances cotidianas de um tempo marcado pela urgência política, a ficção nos arrasta para uma catástrofe que, nunca é demais lembrar, ainda pode se repetir. E não apenas como a farsa de uma tragédia original, mas como possibilidade permanente nos arranjos do capitalismo. Que o digam os nossos últimos anos. •


*Fábio Mascaro Querido é professor de Sociologia da Unicamp.

Publicado na edição n° 1257 de CartaCapital, em 03 de maio de 2023.

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