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A demarcação das imagens

A chegada dos indígenas à curadoria de mostras feitas por grandes instituições coloca em xeque as velhas representações dos povos originários

Eles e nós. Xingu: Contatos, no IMS, confronta retratos dos irmãos Villas-Bôas com filmes de Takumã Kuikuro e fotos de Kamikia Kisêdjê - Imagem: Takumã Kuikuro, Kamikia Kisêdje e Henri Ballot/IMS
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A Covid-19 deixou marcas profundas na vida de Wally Amaru. Morador de uma aldeia do Xingu, ele decidiu pintar telas com desenhos ancestrais de seu povo e vendê-las na internet para custear remédios e aplacar os efeitos da pandemia. Ainda assim, perdeu a mãe, a cunhada, a prima e a tia para o Coronavírus.

Essa tragédia pessoal marca de forma profunda o gigantesco mural Hototo ­ijatagü Tüihuguisinhü, composto de grafismos criados pelos povos do Alto Xingu. Esses desenhos, estampados na pele durante rituais, evocam a memória das populações presentes no Brasil muito antes da chegada dos portugueses.

Desde a semana passada, o painel de Amaru ocupa a parede externa de um prédio localizado em uma das regiões mais movimentadas de São Paulo: o entroncamento entre a Avenida Paulista e a Rua da Consolação. Em meio ao vaivém de pedestres e veículos, a imagem evoca não apenas a resiliência e a luta dos povos indígenas, mas a vitalidade de uma produção cultural que, a despeito de séculos de apagamento, sobrevive.

Hototo ijatagü Tüihuguisinhü foi encomendado pelo Instituto Moreira ­Salles (IMS) com o objetivo de levar, para além dos muros da instituição, algumas das questões presentes na exposição Xingu: Contatos, aberta no sábado 5, em São Paulo.

Wally Amaru, do Xingu, é autor de um gigantesco painel instalado na região da Avenida Paulista

O título alude às fricções e relações estabelecidas entre brancos e indígenas no Brasil a partir do acervo do IMS, que guarda, entre outros, materiais dos fotógrafos Henri Ballot e José Medeiros, da revista Cruzeiro, e dos irmãos Villas-Bôas. Com seus registros, eles atuaram diretamente para o reconhecimento dos povos do Alto Xingu diante do Estado, resultando na primeira demarcação de terras do País, o Parque Indígena do Xingu, hoje ocupado por mais de 6 mil habitantes em 16 aldeias.

A exposição tem como ponto de partida as comemorações dos 60 anos desse marco, celebrado em 2021. Mas, passado o tempo, tornou-se impossível olhar para o legado sertanista sem trazer à tona a perspectiva dos próprios indígenas. Por esse motivo, o cineasta Takumã ­Kuikuro, que vive na aldeia Ipatse, no Parque Indígena do Xingu, assina a curadoria ao lado do jornalista Guilherme Freitas e da assistente Marina Frúgoli.

“Essas imagens antigas não representam nossas lideranças. Por isso é importante contarmos nossa própria história”, afirma Takumã, diretor do premiado documentário As ­Hiper-Mulheres (2011). “Como diz Ailton Krenak, depois de demarcar a terra, agora é nossa vez de demarcar a tela.”

Foi ele quem sugeriu o nome de ­Amaru para o mural e encomendou curtas-metragens inéditos a cinco cineastas e comunicadores indígenas: Piratá ­Waurá, Kujãesage Kaiabi, Kamatxi Ikpeng, ­Divino Tserewahú, Kamikia Kisêdjê, ainda uma das poucas mulheres indígenas a realizar filmes. Esse material compõe um dos dois andares da exposição.

Protagonismo. A artista e ativista Daiara Tukano assumiu a curadoria da exposição Nhe’ Porã: Memória e Transformação, em cartaz no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo – Imagem: Ciete Silvério

Assim como Takumã – também autor de um dos filmes, junto ao Coletivo Kuikuro de Cinema –, esses realizadores são crias da ONG Vídeo nas Aldeias. O projeto, iniciado nos anos 1980 pelo indigenista Vincent Carelli, colocou câmeras nas mãos dos xinguanos e, desde então, incentiva a utilização do audiovisual como ferramenta para o fortalecimento de suas identidades.

A relação dos povos do Xingu com sua representação ganha novos desdobramentos no segundo andar da exposição, que contrapõe fotografias feitas na região no século XX, por brancos, com imagens contemporâneas produzidas pelos próprios indígenas. Essas imagens dialogam com outras questões atuais, como o protagonismo feminino e a importância da preservação da floresta. No espaço, um painel inédito de Denilson Baniwa costura fotos com um mapa autoral daquele território.

Um legado da exposição é a requalificação do acervo sob a guarda do IMS. Informações registradas incorretamente nos arquivos foram corrigidas e pessoas, locais e situações até então sem catalogação foram identificados. Além disso, estão expostas apenas imagens devidamente autorizadas pelos retratados ou seus familiares, em um esforço para reequilibrar as relações de poder envolvidas na produção das imagens.

“Por muito tempo, essas fotos foram símbolos do que era ser indígena no Brasil, mas todas foram feitas por brancos”, diz Freitas. “Em parceria com a Associação Terra Indígena do Xingu, produzimos novas legendas, e este é um trabalho que não acaba agora.”

O protagonismo dos indígenas e a urgência de se falar sobre este universo é um movimento sem volta. Prova disso é que cada vez mais são eles próprios os organizadores do crescente número de atividades culturais reunindo obras e produções artísticas de seus povos nos centros urbanos.

É o caso do 1º Festival de Cinema e Cultura Indígena, idealizado por ­Takumã, que acontece no início de ­dezembro, em Brasília. Todos os curadores, consultores e jurados são indígenas. E ainda da exposição Nhe’ Porã: Memória e Transformação que, desde o mês passado, está em cartaz no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo.

“Estar no museu é dizer que a nossa luta é até o fim. Não é uma moda. É uma mudança”, diz Daiara

Nhe’ Porã revela ao público todas as famílias linguísticas dos cerca de 175 idiomas indígenas que resistem até hoje e são falados por 305 etnias no Brasil. A curadora foi a artista, comunicadora e ativista Daiara Tukano, que fez questão de assumir o papel sozinha.

“A última das minhas preocupações é se vou ser validada pelo museu ou a academia. Minha preocupação é com a validação dos meus parentes, porque a ‘rádio cipó’ não perdoa”, afirma ela, que contou com uma equipe de 50 profissionais indígenas. “Aceitei o convite para contextualizar mais adequadamente os nossos percursos históricos sem replicar abordagens ultrapassadas e muitas vezes embebidas por relações coloniais racistas.”

Um rio de palavras conduz a exposição, colocando o visitante em contato tanto com as diferentes sonoridades de cada língua quanto com a ­pluralidade de visões de mundo por elas carregadas. Estão incluídas no percurso as incessantes lutas por reconhecimento dos saberes e direitos dos povos indígenas, bem como sua intensa relação com a espiritualidade.

Nhe’ Porã coincide com o lançamento da Década Internacional das Línguas Indígenas (2022-2032), instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU), e a criação de um ministério dedicado aos povos originários, promessa feita pelo presidente Lula em discurso depois da vitória.

Segundo Daiara, esse reconhecimento é fundamental para todo o planeta. “Nos próximos anos, continuaremos enfrentando um acirramento das mudanças climáticas”, diz. “Se desejamos defender a continuidade da nossa vida, precisamos nos engajar e defender os espaços onde existe diversidade. Estar no museu é questionar isso, mostrar o que a gente está fazendo e que nossa luta é até o fim. Não é uma moda. É uma mudança.” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1233 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A demarcação das imagens “

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