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A crueldade descrita

O paraense Edyr Augusto olha de frente para o Brasil dos subalternos

O mundo construído pelo autor entra em fricção com o real - Imagem: Luiz Braga
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A prosa de Edyr Augusto desconcerta. Não porque seja de difícil compreensão, o que está longe de ser o caso. Mas pelo modo como faz com que nós, leitores, sejamos tragados para uma escrita acelerada, forçados a acompanhar o ritmo frenético dos acontecimentos que se sucedem.

Em seus livros, tal como o recém-lançado Eu Já Morri, o escritor paraense nos coloca diante de um turbilhão de imagens-choque que, embora provoquem certa vertigem, ou talvez por isso mesmo, nos obrigam a encarar de frente algumas das facetas mais cruéis do Brasil real. Do Brasil sob a ótica dos “de baixo”.

Com isso, se suscita alguma empatia com a sorte – ou a falta dela – dos subalternos, Edyr Augusto nos priva de qualquer sensação de conforto. Ele dissipa a ilusão de que o que estamos acompanhando, ainda que tenha sido formalmente elaborado, seja pura ficção. E nos lembra, ao mesmo tempo, que a própria realidade, matéria de sua literatura, é também produto de uma construção.

É nesse poder de interpelação crítica que reside a principal força das histórias de Eu Já Morri, título de um dos 17 contos arrolados na obra. Quem conhece algum dos sete livros anteriores do autor não terá dificuldade em reconhecer temas, lugares e personagens recorrentes.

EU JÁ MORRI – CONTOS. Edyr Augusto. Boitempo (96 págs., 43 reais)

A começar por Belém, a antiga “Paris n’América”, na época do ciclo da borracha, e agora a BelHell – articulação entre a contração de Belém e inferno (em inglês) que dá título ao seu último romance. Em especial a zona que margeia a onipresente Rua Riachuelo, espécie de personagem-cena onde se trombam traficantes, milicianos, policiais corruptos, trabalhadoras do sexo (adolescentes, inclusive), comerciantes informais, evangélicos e crackeiros. E onde se produz violência, muita violência.

Mas estão lá também a elite e o dito poder público, ou seja, os “de cima”, os que comandam a barbárie sem por ela assumir nenhuma responsabilidade, como se observa em “Motel Firenze”, uma das duas histórias mais longas. O desejo, quando está presente, é quase sempre derrotado pelo desfecho desastroso.

Assim acontece, por exemplo, em “Anjo” ou em “Caraxué”, pequenos contos em que uma certa fantasia da paixão (do adolescente pela mulher cujos filhos nascem mortos e do religioso pela nova jovem do ponto de prostituição) aparece para logo ser invalidada pelas adversidades às quais todos estão submetidos.

Ou ainda em “O Amor Entre Nós”, em que dois jovens belenenses, de origens árabe e judaica, que já se conheciam, se encontram por acaso em Jerusalém, onde vivenciam uma relação afetiva intensa, mas são incapazes de resistir às pressões políticas e, por tabela, religiosas. Uma vez mais, o amor é despojado de qualquer catarse ou purificação.

Edyr Augusto, em sua prosa, abandona toda veleidade literária tradicional. Ele nos apresenta, de dentro, o universo fraturado dos que estão à margem – na Belém que, na sua particularidade, revela algo da tragédia brasileira atual. Sem retoques ornamentais e com notável habilidade formal, como quando alterna o narrador das histórias, o escritor paraense desvela a brutalidade de uma realidade “fictícia” que, de tão acintosa, nos sugere que a realidade “real” não precisa ser do jeito que é.

É essa negatividade feroz que sustenta a frágil utopia implícita na pena de Edyr Augusto. É como se ele nos recordasse que a esperança só existe em nome dos desesperançados, instigando-nos contra a catástrofe que parece inevitável, a não ser que façamos com que não seja. •


VITRINE

Por Ana Paula Sousa

O ano escolhido pelo russo Vladímir Sorókin para ambientar sua trama distópica não está nada longe: 2027. Pudera. A violência e a corrosão que Sorókin, antigo e ferrenho opositor de Putin, retrata em O Dia de Um Opritchnik (Editora 34, 240 págs., 65 ­reais) estão na antessala da Moscou real.

Durou menos de 41 anos a vida de Franz Kafka, lemos na introdução de Kafka: os Anos Decisivos (Todavia, 656 págs., 134,90 reais). E Reiner Stach, autor desta elogiadíssima biografia, debruça-se sobre cinco deles para revelar detalhes da curta vida e da gigante obra do escritor.

A exploração das relações entre o homem e as demais espécies que habitam o planeta se tornou quase um gênero ­literário. Para quem se interessa por ele, Donna Haraway é um nome a não deixar passar. Dela, saiu no Brasil Quando as Espécies se Encontram (Ubu, 416 págs., 99 reais).

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1229 DE CARTACAPITAL, EM 12 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A crueldade descrita “

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