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A corrida pelo intangível

A realização do Rio 2C e um estudo com a atualização do PIB do setor ajudam a dar concretude à ideia da cultura como vetor do desenvolvimento

Criativos. O Rio 2C, principal encontro do setor na América Latina, levou mais de 40 mil pessoas à Cidade das Artes – Imagem: FilmArt Media
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Entre 11 e 16 de abril, 42 mil pessoas estiveram na Cidade das Artes, na Barra da Tijuca, para participar do Rio 2C, que se apresenta como o “maior encontro de criatividade da América Latina”. Nessa mesma semana, em Säo Paulo, o Itaú Cultural apresentou o estudo PIB da Economia da Cultura e das Indústrias Criativas (ler texto à pág. 52) e reuniu 22 secretários de Estado que, juntos, assinaram a carta A Cultura Como Valor. Enquanto isso, na China, a ministra Margareth Menezes cumpria uma agenda ligada à cultura e, em especial, ao audiovisual.

A simultaneidade dos três acontecimentos, embora fruto de coincidência, evidencia que, pós-pandemia e pós-Bolsonaro, a ideia de que as indústrias culturais e criativas são incontornáveis dentro de um projeto de desenvolvimento retorna com mais força. E parece, inclusive, encontrar eco no governo petista.

No painel de abertura do Rio 2C, Márcio Tavares, secretário-executivo do Ministério da Cultura (MinC), afirmou que um dos desafios do governo será “conciliar as políticas de diversidade e democratização com um mercado global cada vez mais concentrado”. Sabe-se que, hoje, os ativos intangíveis – dentre os quais está a propriedade intelectual – são a base de algumas das empresas mais valiosas do mundo.

“Se a gente falasse de economia e de mercado há dez anos, teria menos acolhimento”, avalia Eduardo Saron, presidente da Fundação Itaú. “O núcleo da estrutura criativa do País começa a tomar cons­ciência de que a cultura tem outros valores, mas também é um ativo estratégico. Isso é uma mudança de paradigma.”

“De que forma o Brasil vai projetar a sua imagem para o mundo?”, pergunta Lazarini

De acordo com a pesquisa do Observatório Itaú Cultural, as atividades criativas – que incluem games, moda, arquitetura etc. – responderam, em 2020, por 3,11% do PIB nacional (ver dados à pág. 53). Foi esse universo que ganhou materialidade num Rio 2C lotado de estudantes, profissionais e empresários que trocaram experiências sobre sua atuação e puseram à prova o sonho do soft power – conceito que, incorporado à geopolítica na última década, serviu de norte à curadoria do evento.

Leo Edde, vice-presidente da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), foi um dos que definiram, em uma palestra, o sentido desse termo tornado corrente no meio criativo: “Exercer o soft power é atrair e criar desejo por meio de ideias, cultura e valores”.

O exemplo mais usual do poder exercido por meio da cultura é a onda coreana, chamada Hallyu, que tem no K-Pop e no vídeo Gangnam Style (2012), do rapper PSY (o primeiro a atingir 1 bilhão de visualizações no YouTube), sua face mais reluzente. A indústria cultural sul-coreana foi estruturada a partir do início dos anos 1990, com participação do Estado e estímulos ao investimento privado. “A cultura sul-coreana foi exportada como uma marca”, diz Edde. E qual seria, a esta altura, a marca da cultura brasileira?

“Como a criatividade brasileira está se expressando? Como o País vai se projetar para o mundo?”, responde, em forma de perguntas, Rafael Lazarini, idealizador do Rio 2C e VP para a América Latina da Live Nation, uma das maiores empresas de entretenimento do mundo. “A gente não pode olhar para o Brasil de hoje como se fosse o de antes. O que posso dizer é que os eventos ao vivo têm enfrentado o desafio de ser inclusivos e diversos. Esses atributos não podem mais ser tratados como acessórios. O que vemos surgir, com essa mudança, é um país de fato diverso, que assume ­suas influências afro, por exemplo”, diz ele.

Quando começa a refletir sobre o papel da cultura na projeção de uma imagem positiva do País, Lazarini acaba por se lembrar dos ataques ocorridos em Brasília, no dia 8 de janeiro, quando obras de arte foram destruídas. O País, nesse sentido, ainda precisa entender o quanto o ditado popular do “falem mal, mas falem de mim” impactará esse movimento de retorno ao cenário global.

A ideia do jeitinho brasileiro e a destruição da Amazônia produziram, na avaliação de Edde, o “soft power reverso”. O País ocupa a 31ª posição no Global Soft Power Index – tendo caído três posições desde o último relatório. Ainda assim, o Brasil continua a ser percebido como “influente” em artes e entretenimento.

Direitos. KondZilla, sucesso estrondoso no YouTube, pede regulação das plataformas – Imagem: Redes sociais

“Para mim, o soft power é geopolítica e, no caso do Brasil, esse processo passa necessariamente pela regulação das plataformas de vídeo sob demanda”, afirma ­Edde, que também é produtor ­audiovisual. “Temos um mercado consumidor gigantesco, mas, sem uma legislação que favoreça a presença da produção brasileira em todas as telas, a gente vai se distanciar ainda mais da imagem do Brasil real.”

Edde faz questão de pontuar que, décadas atrás, os países desenvolvidos foram protecionistas em relação a suas indústrias e, por isso, estão em um estágio no qual é melhor defender a livre concorrência. “Mas nós não podemos vender só commodities”, insiste. Cabe lembrar que o conceito de “exceção cultural” foi advogado pela França no pós-Guerra, em 1947.

O tema da regulação do streaming emergiu com força no Rio 2C e mobilizou até mesmo quem se fez numa trilha paralela à do audiovisual tradicional – produzido, sobretudo, com recursos públicos. KondZilla, que veio do funk e é dono de um selo musical e um canal no YouTube com 66 milhões de inscritos, usou o palco da Cidade das Artes para pedir a regulação.

Em sua palestra, ele contou que o Brasil é, para o Spotify, o terceiro maior território do mundo, mas gera uma receita correspondente a apenas 1,7% do total global. “Ou seja, existe uma diferença enorme entre alcance e receita”, observou, para dizer, na sequência, que as grandes empresas que aqui atuam deveriam ser obrigadas a investir em conteú­do local e na formação de profissionais nas periferias. A série que KondZilla fez para a Netflix, Sintonia, foi a terceira em língua não inglesa mais vista na plataforma no mundo.

No fenômeno KondZilla reside também um dos paradoxos da tentativa brasileira de se projetar como um país no qual as indústrias criativas florescem: nossas desigualdades. “As periferias, que também não são mais periferia, mas o centro dessa produção cultural, têm uma pujança criativa que a política pública tem dificuldade de capturar e fomentar”, diz ­Saron. A política e o próprio mercado.

Patricia Sant’Anna, criadora da empresa de pesquisas Tendere e palestrante do Rio 2C, captura essas contradições em sua prática. “Algumas empresas me contratam para tentar entender por que determinado produto vende no mundo inteiro e não aqui. A gente acha feio o que todo mundo acha bonito, e vice-versa”, diz ela.

Patricia veio do mercado da moda, justamente aquele que, dentro das indústrias criativas, é o que mais exporta. Ela diz que adoramos saber que as modas praia e fitness e os calçados brasileiros têm saída no exterior, mas temos pudores em relação à cara da nossa moda.

“A gente poderia exportar também a estética da periferia, do cabelo alisado, da unha grande, dos shorts curtíssimos. Mas esse é o tipo de exportação visto como negativo, vulgar. Porque a gente, no fundo, ainda quer se ver como a elite europeia”, diz Patricia. “Temos ­youtubers que fazem sucesso mostrando como construíram seus barracos, mas isso tende a ser inviabilizado pelas indústrias criativas.”

Entre os corredores cheios do Rio 2C, a exposição de tais parodoxos faz Lazarini refletir: “Com o abismo social que temos no País, somos um poço de contradições também quando falamos de criatividade ”.


A jornalista viajou a convite do Rio 2C.


Uma nova metodologia

Um estudo realizado pelo Observatório Itaú Cultural estima que o setor criativo brasileiro responda por, pelo menos, 3,11% do PIB brasileiro

Dados. Quanto movimentam as festas juninas do País? – Imagem: Prefeitura de Campina Grande/GOVPB

Até a divulgação do estudo PIB da Economia da Cultura e das Indústrias Criativas, a principal referência sobre o setor era o Mapeamento da Indústria Criativa no Brasil, publicado pela Firjan em 2022. Enquanto no trabalho da Firjan o PIB do setor criativo foi estimado em 2,91% do PIB do País, o Observatório Itaú Cultural chegou ao porcentual de 3,11%. “Queríamos não só acumular dados para as séries históricas, mas aprofundar os estudos e validar a nossa metodologia”, diz Eduardo Saron, presidente da Fundação Itaú. A construção da metodologia incluiu diálogos com pesquisadores e especialistas da França, Itália, Holanda e Colômbia. “Tenho certeza de que o número é maior do que os 3,11%, mas a gente não consegue captar algumas atividades”, prossegue Saron. “Um evento junino, por exemplo, mobiliza gastronomia, rede hoteleira, transporte aéreo etc. Há um Brasil plural e profundo que ainda precisa ser capturado por esse universo de dados. Precisamos gerar dados e indicadores das indústrias criativas capazes de embasar decisões de política pública.”

Publicado na edição n° 1256 de CartaCapital, em 26 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ”

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