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1985, 2022

Um filme argentino, as eleições no Brasil e as diferenças entre os dois países

Darín no papel de Strassera, o procurador que levou Videla (de bigode) e outros generais à cadeia. Brilhante Ustra, ídolo de Bolsonaro, nunca pagou pelos crimes - Imagem: Wilson Dias/ABR, Amazon Studios e Dani Yako/AFP
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Argentina, 1985 é sóbrio e a sobriedade marca a maior virtude do filme. Diante de uma história conhecida, os diretores optaram por concentrar-se na família e no trabalho de Julio Strassera, encarnado por ­Ricardo Darín, em outra soberba interpretação. Os relatos das vítimas, literais, falam por si. Cabe a Strassera, procurador omisso durante a sangrenta ditadura, processar por crimes contra a humanidade os militares que sequestraram o país, liderados pelo general Jorge Rafael Videla. Os homens se medem nas circunstâncias e o promotor cumpre o dever, sem pensar que assim nascem os heróis. Em tempo exíguo, auxiliado por jovens inexperientes, após a recusa de medalhões do Ministério Público (por medo, conivência ou descrença), Strassera reúne os primeiros 800 casos que detalham o amplo, sistemático e cruel mecanismo de repressão operado pelos militares, cujo saldo de vítimas permanece controverso – os dados oficiais contam cerca de 9 mil mortos e desaparecidos, as associações de direitos humanos falam em 30 mil, além de 500 bebês sequestrados. A Argentina havia recuperado as liberdades civis dois anos antes e preferiu não titubear. Em vez de colocar panos quentes e mirar nos esbirros, foi ao ponto que interessava: cancelou a autoanistia redigida nos quartéis e enviou ao banco dos réus os mandantes. Alguns dos generais saíram ilesos do primeiro julgamento, mas seriam alcançados pelas garras da Justiça em ações posteriores. Videla acabaria condenado à prisão perpétua. Nas considerações finais, o comedido Strassera não se conteve: Señores jueces, nunca más.

O ano de 1985 é emblemático na trajetória pós-ditadura de argentinos e brasileiros. Não que os nossos vizinhos tenham trilhado um caminho de bonança e esplendor. Longe disso. Como todas as nações infelizes, a Argentina é infeliz à sua maneira. Na década de 1990, sob o comando de Carlos Menem e Domingo Cavallo, o país tornou-se o rato de laboratório do mais radical experimento neoliberal em curso no planeta. A dolarização, sonho tardio de Paulo Guedes e Roberto Campos Neto, até hoje submete a população a uma armadilha intransponível. Sem solução para a dívida externa, os sucessivos governos administram o aumento da miséria, o descontrole dos preços, o baixo crescimento, a fuga de mão de obra e a explosão do descontentamento. Um bolsonarismo milongueiro tenta deitar raízes na terra arrasada. No ano passado, o economista Javier Milei, que se define como “anarcocapitalista dinâmico”, conquistou uma cadeira no Congresso e promete (ou ameaça) concorrer à Presidência da República em 2023. Uma versão da Lava Jato persegue lideranças progressistas e a maior delas, Cristina Kirchner, escapou ilesa, faz poucas semanas, de uma tentativa de assassinato na porta de sua casa, ato de um extremista de direita, coincidentemente ou não nascido no Brasil. A decisão de punir ditadores e torturadores continua, porém, um divisor de águas. Nas margens do Río de la Plata, os cidadãos preferem manter uma relação madura com a realidade, embora dura, enquanto nós vivemos em uma espécie de Disneylândia político-social, eterno autoengano pueril, subjugados por golpes e golpismos.

Comecemos por 1985. Strassera e sua equipe preparam o julgamento dos generais e os brasileiros, após a frustração da campanha das Diretas Já, choram a morte de Tancredo Neves e resignam-se com a posse de José Sarney, o “cavalo de Troia” no que muitos insistem em chamar de redemocratização. Nos anos seguintes, acreditamos, torcemos e nos frustramos com os Planos Cruzado I e II, vestimos a camisa de fiscais do ­Sarney e engolimos tão insustentáveis quanto inconsequentes pacotes econômicos, do Verão ao Bresser, até tudo desembocar no abismo da hiperinflação, obra esculpida em mármore por Maílson da Nóbrega.

Enquanto os argentinos recordam a tragédia da ditadura, parte dos brasileiros deseja segundo mandato para um defensor da tortura

Em 1989, Menem, sob pressão de militares amotinados, dava um passo atrás e assinava o indulto de agentes condenados por crimes na ditadura argentina, enquanto os brasileiros elegiam Fernando Collor de Mello, o “caçador de marajás”. Se havia marajás, o breve governo Collor não foi capaz de encontrá-los. Mais fácil seria confiscar os caraminguás de milhões de poupadores e deixar PC Farias, o tesoureiro de campanha, elevar o assalto aos cofres públicos a novos patamares de delinquência. Primeiro presidente eleito, primeiro a ser cassado, nem por isso o impeachment levou ao nosso amadurecimento, mas a um carnaval fora de época.

Quase uma década depois, em 1998, a Justiça argentina reabre os processos por roubo de bebês e por participação de militares no Plano Condor, ação coordenada das ditaduras do Cone Sul contra opositores. Em 2003, o Congresso anula as leis de Ponto Final e Obediência Devida, que dificultavam as punições, e em 2005, a Suprema Corte decreta sua inconstitucionalidade. Os julgamentos são retomados e, desde então, mais de mil oficiais e colaboradores do regime foram condenados por crimes na ditadura.

No Brasil, em 2009, o Supremo Tribunal Federal valida a Lei de Anistia, imposta pelos militares 30 anos antes, e joga por terra o esforço do Ministério Público para punir torturadores.  Em 2014, a Comissão da Verdade sistematiza os crimes da ditadura, mas, sem apoio popular, só produz o efeito de atiçar a ira das Forças Armadas contra Dilma Rousseff. Em 2016, o então deputado Jair Bolsonaro, em seu voto pelo impeachment, homenageia o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador da presidenta. As fendas das profundezas se abrem. No ano em que o ex-capitão vence as eleições presidenciais, o Tribunal de Justiça de São Paulo anula a condenação em primeira instância de Brilhante Ustra, falecido em 2015. Nunca mais uma ação por crimes contra a humanidade no período da ditadura prosperou no País. Um único torturador brasileiro esteve à beira de ser condenado, no exterior, por um tribunal em Roma, em consequência da participação no sequestro, tortura, assassinato e ocultação de cadáver de um cidadão italiano. Lorenzo Ismael Viñas Gigli foi capturado em 1980 na fronteira entre Uruguaiana e Paso de los Libres. Átila Rohrsetzer, o delegado brasileiro envolvido no crime, morreu, porém, antes de conhecer a sentença.

Em 2020, os argentinos relembram, no filme indicado à disputa ao Oscar, sua trágica história, para nunca más. Por aqui, os militares, entrincheirados no poder, endossam a ameaça autoritária. Quase metade dos eleitores, por sua vez, cogita, em nome do combate ao comunismo, à Nicarágua, ao curupira e ao banheiro unissex, dar um segundo mandato ao golpista defensor da tortura. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1232 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “1985, 2022”

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