Carta Explica

O que muda com a flexibilização da posse de armas?

Para especialista do Instituto Sou da Paz, a flexibilização da posse de armas vai acarretar em um cenário mais violento: “pessoas vão morrer em decorrência dessa assinatura”

Créditos: EBC
Apoie Siga-nos no

Na terça-feira 15, o presidente Jair Bolsonaro assinou o decreto que facilita a posse de armas de fogo. A ação corrobora com uma de suas principais promessas de campanha, mesmo que 61% da população brasileira não concorde com a ação, como demonstrou pesquisa divulgada pelo Datafolha em dezembro do ano passado.

No plano de governo, ele já afirmava que iria reformular o Estatuto do Desarmamento, que reúne as regras para posse e porte de armas no país. Em declarações públicas, Bolsonaro diz ser a favor da posse de armas de fogo para garantir o direito à legítima defesa para quem ele classifica de “cidadão de bem”.

Com as alterações, se amplia o leque de pessoas que podem se habilitar para ter uma arma de fogo em casa, e também os requisitos que comprovam a necessidade para ter o artefato em casa.

Leia Também:
Seis pontos mal explicados no decreto pró-armas de Bolsonaro

Para entender as mudanças e os possíveis impactos à sociedade, o Carta Educação levou algumas perguntas ao assessor de advocacy do Instituto Sou da Paz, Felippe Angeli, que foi categórico: “Vai piorar o cenário de violência. Pessoas vão morrer em decorrência dessa assinatura do presidente”.

A organização, que atua pela redução da violência no Brasil, e tem como missão contribuir para a efetivação de políticas públicas de segurança e prevenção da violência, se posicionou contra a medida. Em uma campanha nas redes sociais, acompanhada da hashtag #naotatudobem, questiona a postura do governo de transferir a responsabilidade de combater o crime à sociedade, em vez de investir em políticas públicas eficientes.

Explique as principais alterações que o decreto traz à posse de armas
As alterações foram feitas no âmbito do Decreto 5123/2004, que regulamenta o Estatuto do Desarmamento, que dispõe sobre o registro, a posse e a comercialização de armas de fogo e munição. As principais alterações se referem a um ponto que o Estatuto determina sobre a comprovação de uma efetiva necessidade para você adquirir uma arma de fogo. Na legislação e na regulamentação anterior, isso ficava a cargo da Polícia Federal que, a partir da checagem de alguns requisitos, como inexistência de antecedentes criminais, aptidão pra uso técnico por meio de treinamento em clube de tiro, teste psicotécnico, podia validar ou negar a compra da arma de fogo.

A ideia era que a Polícia Federal, a partir das suas superintendências regionais, identificasse no caso a caso as particularidades do demandante e a partir dali decidisse a conveniência e autorização para o indivíduo comprar uma arma de fogo até o limite de seis, como também previsto na Legislação.

Com o novo decreto, o presidente determinou que todas as pessoas que vivem em Estados cuja taxa de homicídios seja superior a 10 por 100 mil habitantes – de acordo com o Atlas da Violência de 2016, uma pesquisa anual publicada pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública – tenham uma efetiva necessidade e a Polícia Federal não tem mais poder de avaliação sobre isso.

A segunda questão é sobre os prazos de renovação, processo necessário para validar a posse de armas de tempos em tempos.  Primeiro, isso era feito de três em três anos até que o ex-presidente Temer fez uma alteração via decreto aumentando a validação de alguns requisitos para a cada cinco anos e outros para dez. Agora, com esse decreto, Bolsonaro altera todos os requisitos – antecedente criminal, aptidão técnica, teste psicotécnico – para 10 anos. Com isso, proprietários de armas que ainda não tinham renovado o registro da sua arma, estão renovados automaticamente por 10 anos.

Outro ponto é sobre o limite de armas, máximo de seis por cidadão. Isso se manteve, mas com uma alteração preocupante. Antes, a cada demanda por uma nova arma – dentro do limite das seis -, o cidadão tinha que passar, a cada vez, por uma nova análise da Polícia Federal. Agora, Bolsonaro coloca que quatro armas já estão incorporadas como direito de partida. Só a partir da quinta e sexta é que o cidadão teria que validar a necessidade.

Comente os impactos de cada medida
Temos alguns problemas. Sobre a necessidade pautada pelo índice do Atlas da Violência de 2016, existe um problema de ordem conceitual e jurídica, o que é necessário hoje, pode não ser amanhã. Ao fixar o critério de necessidade num índice fechado num único ano, você faz um subterfúgio para usurpar o texto legal, é uma maneira de alterar a legislação por meio de um decreto, o que é vedado pela Constituição.

Se você fizesse um argumento no sentido de que, no ano anterior à requisição de compra de armas, segundo o Atlas da Violência, o índice de homicídios fosse superior a 10, pelo menos se teria uma situação dinâmica também. O que eu quero dizer com isso é o seguinte: vamos supor que em 15 anos de decreto, felizmente, os índices de homicídio caiam na maior parte dos Estados da federação. Essa efetiva necessidade continuaria valendo? Ela não pode ter uma radiografia congelada no tempo. Esse é um problema muito grave do decreto, um subterfúgio encontrado para usurpar a vontade do legislador à época da aprovação da lei no Congresso Nacional e que o presidente não pode fazer por decreto, por um ato unilateral.

Sobre as renovações a cada 10 anos, nesse tempo você pode perder sua acuidade visual, coordenação motora, ter parado de treinar no clube de tiro e perdido sua capacidade técnica para manuseio de arma de fogo ou até ter perdido a armam que pode ser furtada, roubada. A renovação é um instrumento perigoso suficiente para que o Estado busque, com uma periodicidade razoável, o proprietário da arma de fogo para aferir se as condições que a lei determina para a posse permanecem. Ao fazer um prazo muito longo, você não garante a permanência dessas condições, o que é temerário.

Em relação aos proprietários que não haviam renovado a posse e agora a renovaram automaticamente isso é um problema porque essa pessoa pode ter morrido, a arma pode ter ido para um herdeiro ou ter sido repassada a um terceiro, ou pode ter sido roubada, entende? Cadê essa arma?

Sobre o direito de ter quatro armas de saída, isso também me parece contrário ao espírito da lei. Se a gente está falando de legítima defesa, qual a necessidade de ter quatro armas?

Leia Também:
Decreto sobre armas de Bolsonaro desagrada apoiadores e críticos

Acredita que essas medidas vão contribuir para um aumento da violência?
Sim, certamente o cenário da violência vai piorar. Não se trata de ideologia, de opinião, de gostar ou não de arma de fogo. Há um consenso científico nacional e internacional que demonstra correlação direta entre o aumento da circulação de armas de fogo e o aumento da violência letal. Óbvio que outros fatores também influem e que essa velocidade depende deles e pode mudar em determinados países e regiões, mas a correlação está estabelecida. É um fato, pessoas vão morrer em decorrência dessa assinatura do presidente. Daqui a alguns anos, poderemos conversar sobre isso.

Muitos policiais dizem a frase, arma é um ótimo instrumento de ataque e um péssimo instrumento de defesa. O próprio presidente Bolsonaro foi roubado na década de 90 e levaram as armas dele. Ter uma arma em casa aumenta as chances de suicídio, de acidentes com crianças, ou aqueles decorrentes de falhas do armamento, que pode disparar ao cair no chão ou mesmo com a trava de segurança acionada.

Também é absolutamente conhecida a correlação entre o mercado legal e o mercado ilegal de armas. Apesar de múltiplas fronteiras, a maior parte das armas utilizadas nos crimes no Brasil são armas curtas, pequenas, fabricadas no Brasil e que, em algum momento, saíram de forma legítima do comércio regular, é adquirida pelo dito cidadão de bem e acaba sendo roubada por criminosos, passando a fazer parte do arsenal do crime. Além da questão das mortes, o que o presidente fez foi criar uma nova fonte de armamento para os criminosos, isso é um fato.

Qual a diferença entre posse e porte de armas?
A posse é você ter uma arma de fogo num local fixo, seja na sua residência ou no local de trabalho. A arma está lá para sua defesa, você tem a autorização para ter a arma nos limites da sua propriedade. Você não pode andar com ela, a não ser em situações específicas, por exemplo, se for levá-la para um clube de tiro, ou da loja para sua casa. Nessas situações é necessário emitir uma guia de trânsito dizendo que está indo de um endereço para outro, mas a arma não pode estar municiada, inclusive a munição tem que ser levada separada da arma, que muitas vezes tem que ir desmontada. Caso você seja parado pela Polícia você mostra sua guia de trânsito para justificar a locomoção.

O porte é você andar com a arma municiada, na cintura, pronta para uso. Isso é autorizado para algumas categorias profissionais, os policiais, Forças Armadas, auditores da Receita Federal, membros do Ministério Público e tribunais, guardas municipais, é mais restrito. [o governo Bolsonaro avalia viabilizar o porte de armas futuramente].

Como a questão da posse de armas é vista por outros países?
Temos uma tendência mundial contrária, de controle mais rígido das armas de fogo. Os países que temos informações mais válidas, como Japão, Austrália e Israel, tem uma política de acesso bem rígida. Na Inglaterra e Japão é quase impossível ter acesso a uma arma de fogo e, não à toa, eles têm os menores índices de criminalidade.

A Austrália e o Canadá passaram nos últimos 15 anos por processos parecidos como o do Brasil na época do Estatuto, de ter legislações mais restritivas, o que foi acompanhado de uma diminuição no número de homicídios ou, como no caso do Brasil, se não uma diminuição, uma manutenção dos níveis ao invés do aumento contínuo como acontecia.

O único país que tem uma legislação totalmente permissiva é os Estados Unidos. É verdade que o país tem um índice de homicídio menor que o Brasil, agora é preciso considerar como o país é diverso e complexo. Você tem cidades como Baltimore, Nova Orleans, St Louis e Chicago que têm índices de homicídio maiores do que o Rio de Janeiro. Então, não é bem assim.

Se você pegar os 15 países com maior IDH, ao qual os EUA faz parte, o índice de homicídio dos EUA é dez vezes superior ao do segundo colocado. É preciso comparar os iguais, considerando que há outros elementos que corroboram com a violência, como desigualdade social, acesso à educação e uma série de outros fatores.

Agora, se você comparar os EUA a um país com o mesmo IDH, vai ver que eles vivem uma situação de guerra, desnecessária considerando o seu nível de desenvolvimento, e isso sem dúvidas está atrelado ao fácil acesso às armas de fogos. Nova York, por exemplo, que tem uma legislação mais restritiva, conseguiu derrubar seus índices de homicídio de maneira exponencial.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo