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A CPI, o STF e a Polícia Federal cercam os bolsonaristas envolvidos na tramoia golpista

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O mito e o ajudante, vendedores de relógio – Imagem: Alan Santos/PR
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Andam fúnebres os dias do bolsonarismo. Passados nove meses da derrota nas urnas, o delírio do círculo mais próximo de Jair Bolsonaro de impor, por meio de um golpe, o domínio incontestável sobre 8 milhões de quilômetros quadrados deu lugar ao pavor incontrolável de passar os próximos anos confinado, na melhor das hipóteses, em um cubículo de 6 metros quadrados. A realidade tem sido cruel. A fina flor do ­entourage bolsonarista está, a cada dia, mais longe dos palácios e mais perto do xilindró. O mais recente episódio a abalar as estruturas do ex-presidente e associados foi a prisão, na quarta-feira 9, de Silvinei Vasques, ex-diretor da Polícia Rodoviária Federal. A detenção foi autorizada após surgirem novas evidências de que, sob o comando de Vasques, a PRF agiu para impedir ou dificultar o trânsito de eleitores no Nordeste, região decisiva para a vitória de Lula. O delegado é investigado pelos crimes de prevaricação, violência política e uso da máquina pública para interferir em processo eleitoral democrático.

Após a prisão de Silvinei Vasques, ex-diretor da Polícia Rodoviária Federal, convém a Bolsonaro colocar as barbas de molho

A prisão de Vasques é má notícia para o bolsonarismo de forma geral, mas especialmente ruim para o ex-ministro da Justiça Anderson Torres, atualmente em prisão domiciliar. Um dia depois de comparecer à CPI dos Atos Golpistas e se declarar inocente de toda e qualquer acusação, além de legalista, Torres voltou ao centro da tramoia antes de a Terra completar uma volta sobre o próprio eixo. Do Ministério da Justiça de Bolsonaro saiu o mapa com os municípios mais “lulistas” do Nordeste alvos preferenciais das operações da Polícia Rodoviária no segundo turno. “Ninguém deixou de votar e o próprio Tribunal Superior Eleitoral reconheceu”, afirmou o depoente aos parlamentares da comissão. Quanto ao fato de ter viajado para os Estados Unidos dois dias antes do “Capitólio à brasileira” em 8 de janeiro, as invasões simultâneas do Congresso, Palácio do Planalto e Supremo Tribunal Federal, o ex-ministro de Bolsonaro ofereceu uma explicação singela e mentirosa. “Se eu tivesse recebido alertas, não teria viajado”, garantiu. Parênteses: os alertas da PM ao então secretário de Segurança do Distrito Federal são públicos, de conhecimento até dos cambuís que enfeitam de flores a capital. Sobre a minuta do golpe, o documento escrito para justificar o fechamento do STF, a prisão de ministros da Corte e a intervenção militar, Torres classificou de “imprestável” e “aberração jurídica”, mas não explicou o motivo de manter uma cópia em casa nem disse quem preparou e distribuiu o rascunho.

Integrantes da CPI apontam, no entanto, provas abundantes, inegáveis, da participação do ex-ministro na tramoia golpista. “Anderson Torres mentiu muito na sessão, mas todos os documentos foram lidos para ele, expostos ao público, e com certeza chegarão à PGR, PF e STF. Terá de pagar pelo crime que cometeu e, ao fim do processo, ele, que já está com tornozeleira, acabará condenado”, acredita o deputado federal Rogério Correia, do PT. “A comissão avançou na demonstração do processo de golpe. A cada semana as novidades surgem em documentos, filmes e depoimentos. Veja o caso do Silvinei Vasques, que também falou muitas mentiras na CPI. Todos os dados foram checados e isso, inclusive, fortaleceu a investigação que culminou na sua prisão.”

Delgatti e Zambelli: relações para lá de perigosas – Imagem: Redes sociais

Vasques é o terceiro golpista a parar na prisão, ao lado de Torres e do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, detido no Batalhão do Exército de Brasília desde 3 de maio. Do trio, Cid tornou-se em grande medida, um totem do bolsonarismo, mistura de falsa malandragem, covardia e déficit cognitivo. As histórias do tenente-coronel conferem um certo ar cômico à tragédia generalizada. A última? A tentativa de vender por 300 mil ­reais um relógio Rolex presenteado a Bolsonaro pelos monarcas sauditas, parte do conjunto de joias que o ex-presidente queria surrupiar do Erário. O número de presos não deve, no entanto, parar por aí. “Os crimes são graves. Dá cadeia, podemos dizer assim. Crimes de organização criminosa contra a democracia e o patrimônio público. Com certeza, muita gente deve ser presa se a Justiça andar dentro do trilho”, avalia o advogado e professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo Pedro Serrano (coluna à pág. 17). “O cerco está se fechando para Bolsonaro e para o bolsonarismo”, acrescenta o advogado Marco Aurélio de Carvalho, coordenador do Grupo Prerrogativas.

“A associação criminosa insuflava as Forças Armadas à tomada do poder”, anotou o subprocurador-geral Carlos Frederico dos Santos

A leva de prisões vai da ­cúpula à base. Na segunda-feira 7, a Procuradoria-Geral da República apresentou as alegações finais nas ações penais contra 40 réus das invasões de 8 de janeiro. Ainda a nutrir esperanças de permanecer no cargo, Augusto Aras, que ao longo dos quatros anos de governo Bolsonaro reavivou a pecha de “engavetador-geral”, deu aval a um pedido de “punição exemplar” aos envolvidos nos distúrbios. As penas máximas podem chegar a 40 anos de prisão. No mesmo dia, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, revogou a detenção de 90 acusados, que passarão a usar tornozeleiras eletrônicas, mas manteve outros 150 na cadeia. Os réus respondem pelos crimes de associação criminosa armada, golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, deterioração de patrimônio público tombado e dano qualificado por violência e grave ameaça. “A associação criminosa insuflava as Forças Armadas à tomada do poder e tinha o objetivo de ocasionar a deposição do governo legitimamente eleito”, anotou o subprocurador-geral Carlos Frederico dos Santos, coordenador do Grupo Estratégico de Combate aos Atos Antidemocráticos.

Mentir na CPI não foi de muita valia para Vasques, preso na quarta-feira 9 por atentar contra o processo eleitoral – Imagem: Marcos Oliveira/Ag. Senado

Musa do bolsonarismo, a deputada federal Carla Zambelli, do PL, é outra na mira. O hacker Walter Delgatti Neto, aquele mesmo a expor o conluio entre Sergio Moro e a força-tarefa do Ministério Público durante a Operação Lava Jato, afirma ter sido contratado pela parlamentar para tentar invadir e desmoralizar as urnas eletrônicas. Sem sucesso na empreitada, Delgatti teria ­hackeado os computadores do Conselho Nacional de Justiça e acessado dados privados de Moraes. Mais: em uma reunião no Palácio do Planalto intermediada por Zambelli, teria recebido a missão de Bolsonaro de invadir o sistema do TSE. Neste caso, missão dada não foi missão cumprida. O ex-presidente, segundo relatos na mídia, teria admitido a amigos o teor da conversa com Delgatti. Preso por determinação do Supremo, o hacker iria prestar depoimento à CPI na quinta-feira 10, após o fechamento desta edição. Segundo a relatora da comissão, senadora Eliziane Gama, do PSD, o depoimento é importante para “esclarecer como a deputada Carla Zambelli atuou de modo a questionar a legitimidade do sistema eleitoral brasileiro nas eleições de 2022”.

Outro bolsonarista de carteirinha, o influenciador digital Allan dos Santos virou réu por ordem do Tribunal Regional Federal da 1ª Região na segunda-feira 7 por crime de ameaça contra o ministro Luís Roberto Barroso, do STF. A decisão anula outra, tomada pela 12ª Vara Federal em agosto de 2021, segundo a qual Santos estaria protegido pelo princípio da liberdade de expressão. À época, após ser chamado de terrorista digital pelo ministro, o blogueiro disse que “se tirar o digital e deixar só terrorista, Barroso verá o que será feito com ele”. O blogueiro fugiu para os Estados Unidos, cujas autoridades negaram sua extradição ao Brasil, e tenta reorganizar seu canal de “notícias”, o Terça Livre, fábrica de fake news a serviço de Bolsonaro.

Torres não aprendeu nada com o depoimento do parceiro Vasques. O ex-ministro, de tornozeleira eletrônica, também preferiu mentir aos parlamentares – Imagem: Lula Marques/ABR

O nome central da trama continua a ser, no entanto, o tenente-coronel Cid. Há um temor generalizado de que o ajudante de ordens não resista à pressão ou ao risco de virar bode expiatório e aceite uma delação premiada. Mesmo calado, Cid continua uma fonte pela qual jorram novas relações. A quebra do sigilo dos e-mails e do telefone do militar tem fornecido não só relatos pitorescos, entre eles a negociação do Rolex, mas evidências dos hábitos duvidosos do clã Bolsonaro. A CPI obteve, entre outras, informações de que integrantes da ­equipe de Cid depositaram de forma fracionada e em dinheiro vivo 60 mil reais na conta de Michelle Bolsonaro em um período de oito meses ao longo de 2022. Ao todo foram realizados 45 depósitos, todos abaixo de 6 mil reais, prática, segundo o Conselho de Controle de Atividades Financeiras, normalmente adotada para dificultar o rastreamento do dinheiro. As revelações motivaram nova convocação do tenente-coronel à CPI – da última vez, escorado por um habeas corpus, ele permaneceu calado, a ponto de não informar nem a sua data de nascimento. Outro objetivo dos deputados e senadores governistas da comissão é extrair do militar informações sobre a participação de oficiais da ativa na conspiração golpista, evidenciada nas conversas reveladas entre o ex-ajudante de ordens e o coronel Jean Lawand Júnior, segundo quem as Forças Armadas “estavam apenas esperando Bolsonaro dar a ordem” para tomar o poder.

No espectro bolsonarista, os militares da ativa ou da reserva permanecem a distância segura das garras da Justiça. Uma das razões é a delicada relação do governo Lula com as Forças Armadas, embora a convicção a respeito do envolvimento da caserna na tentativa de golpe se reforce a cada dia. A quebra do sigilo telemático de Cid revelou que, em março, o Gabinete de Segurança Institucional repassou, por intermédio do ajudante de ordens, e-mails funcionais “urgentíssimos” a Bolsonaro com detalhes sobre viagens nacionais e internacionais de Lula, risco à segurança do mandatário. As mensagens foram enviadas por três remanescentes da gestão do general Augusto Heleno no GSI durante o governo anterior: Márcio Alex da Silva, do Exército, e Rogério Dias Souza e Dione Jefferson Freire, da Marinha. O órgão promete apurar os fatos. “Vamos abrir sindicância e afastar de suas funções os envolvidos”, afirmou o general Marcos Antônio Amaro dos Santos, atual ministro-chefe.

“Por trás de tudo, evidentemente, estava Bolsonaro”, afirma o deputado Rogério Correia, integrante da CPI dos Atos Golpistas

Segundo Correia, a tentativa de golpe fica cada vez mais nítida. “Desde o 7 de Setembro de 2021 Bolsonaro ameaça o País com um golpe, e a partir dali passou a deteriorar as relações democráticas, negando as urnas eletrônicas e atacando o Supremo e o Congresso. Todo esse procedimento levou à tentativa de surrupiar as eleições com uma gastança incomensurável antes do primeiro turno e o plano para impedir eleitores de votar”, diz. “Bolsonaro, na verdade, estava por trás, lá nos Estados Unidos, articulando o processo golpista que culminou com a tentativa de bomba no aeroporto, o fechamento de estradas, a quebradeira no dia da diplomação do presidente Lula e, finalmente, o 8 de Janeiro.” As conexões estão demonstradas pela CPI e constarão do relatório final, garante o parlamentar. “Vislumbramos um relatório que será muito concreto e rico em detalhes para mostrar o processo de golpe.”

Um forte indício da participação de Bolsonaro, segundo integrantes da CPI, são os e-mails com o discurso de reconhecimento da vitória de Lula que o então presidente derrotado se recusou a ler publicamente, após a divulgação dos resultados eleitorais. O texto, em posse da comissão, foi redigido pelo ex-ministro das Comunicações Fábio Faria, e enviado a Bolsonaro com cópia para Carlos França, então ministro das Relações Exteriores. O candidato à reeleição manifestou-se pela primeira vez 48 horas após a derrota, em um discurso de apenas dois minutos, no qual não falou sobre o resultado das urnas nem mencionou o nome de Lula. Outra revelação feita pela CPI: assessores do ex-presidente excluíram 17.354 e-mails funcionais antes de deixarem o poder, episóedio que confirma a reduzida capacidade intelectual da equipe do ex-capitão. Os assessores excluíram os e-mails da caixa principal, mas esqueceram de apagar os arquivos da lixeira dos computadores. Eis aí uma boa linha de defesa de Bolsonaro, caso ele venha a responder na Justiça por esses crimes: o golpe era inviável por causa do completo despreparo dos golpistas.

A Procuradoria-Geral da República pede punição exemplar aos invasores do 8 de Janeiro. As penas podem chegar a 40 anos de prisão – Imagem: Ton Molina/AFP

A estratégia de “esperar o golpe”, acrescenta Correia, continuou com a ida do ex-presidente para os EUA. “Por trás de tudo, evidentemente, estava Bolsonaro.” O deputado garante: a CPMI “tem muito mais” elementos para indiciar o ex-presidente. “Esses indiciamentos serão feitos e os crimes correlatos serão mencionados, para que o Supremo possa, no fim das investigações, definir as punições necessárias por meio de processo judicial. Isso vale para muita gente e termina, com gravidade ainda maior, em Bolsonaro, que deverá ser indiciado e terá solicitada a pena que, em seu caso, levará à prisão.” Para Carvalho, não se trata de revanchismo. “Isso terá efeito pedagógico, uma demonstração para a sociedade de que atentar contra as instituições é assumir um risco extremamente alto, que seguramente terá sérias consequências do ponto de vista jurídico. Não podemos permitir que a eventual falta de responsabilização possa servir de incentivo para ataques futuros. Creio que o sistema de Justiça tem essa compreensão.” •

Publicado na edição n° 1272 de CartaCapital, em 16 de agosto de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um por um’

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